FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 26
APESAR DOS ALTOS E BAIXOS NA SAÚDE DE D. Esmeralda, ela e Lívia tiveram bons momentos nos últimos dias. Esses momentos pareciam mais uma despedida velada. Ambas pressentiam. Mas nenhuma delas falava nada sobre isso. Apenas viviam cada momento intensamente. Ainda que fosse o lanche da tarde, o costumeiro pão de milho com café. Ainda que fosse as leituras da mãe na saleta que, agora Lívia acompanhava, ora, fazendo o esboço de algum desenho ou o projeto de alguma de suas aulas particulares ou lendo algum livro de arte. D. Esmeralda lia como sempre os romances de Machado de Assis.
Em algum momento da leitura, D. Esmeralda sempre lia em voz alta algum trecho que lhe tocasse. Em uma tarde, por exemplo, ela quebrou o silêncio da leitura com uma frase do romance “Ressurreição” de Machado de Assis que ainda não acabara de reler.
—“A primeira glória é a reparação dos erros”. —E fitou os olhos de Lívia que parou o que estava fazendo para ouvi-la. Ambas ficaram refletindo a frase em silêncio. Então Lívia soube que caberia a ela reparar os erros da sua família. Ela só não sabia como. Uma coisa era certa, sua mãe esperava isso dela.
Numa outra tarde, D. Esmeralda surpreendeu Lívia com outro trecho também do romance “Ressurreição” de Machado de Assis.
— “Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luz natural dizia melhor com a sua tez, como também a simplicidade do vestuário era para ela um realce...” (Assis, Machado, 1872).
Depois ambas riram em razão da personagem do romance também se chamar Lívia. E a narração da mãe parecia se referir a ela.
— Tenho certeza que você é mais bonita que a personagem do livro. — D. Esmeralda olhou para a filha que, de fato era linda, mesmo na sua simplicidade. — E tenho certeza também que você e Arthur logo se acertarão.
—Mamãe... — Lívia ficara sem jeito, mais pela referência a Arthur do que pela referência à sua beleza e voltara sua atenção ao esboço que fazia em um papel preso numa prancheta. Ela não queria falar de Arthur.
D. Esmeralda compreendendo a filha e, para quebrar a tensão, fechou o livro e voltou sua atenção para o desenho que Lívia rabiscava.
—O que você está desenhando filha?
—Estou fazendo um esboço dessa casa. Veja... — E sorrindo mostrou à mãe o esboço meio avermelhado e esfumado da casa onde moravam. A tensão havia sumido.
— Nossa, minha filha. Está perfeito. — E pegou a prancheta das mãos da filha para observar melhor o desenho. —Você é uma artista filha.— disse beijando seu rosto.
—Essa técnica de desenho, mamãe, chama-se sanguínea — Lívia explicou— E a gente faz com esse lápis de esboço que na verdade é o giz sanguíneo.
— Parece um lápis comum. — A mãe de Lívia tomou das mãos de Lívia o lápis que possuía um tom castanho avermelhado escuro parecido com terracota.
— Sabia mamãe que em 1512 Leonardo da Vinci fez seu autorretrato com essa técnica? Esse desenho está na Biblioteca Reale em Turim.
Assim, tanto D. Esmeralda, quanto Lívia compartilhavam entre si os seus interesses. E as conversas se estendiam por horas e horas como numa tarde em que Lívia lia um livro de artes de quatrocentos e quarenta páginas, o “Significado nas artes visuais: 99” do autor Erwin Panofsky. Depois de observar por instantes a filha entretida a ler o livro grosso, D. Esmeralda perguntou:
—Lívia, o que significa Arte Visual?
Lívia tirou a atenção da leitura e fechando o livro olhou para a mãe.
— Deixe ver como te explico... — pareceu pensar alguns segundos. — Bem, mamãe... Um significado bem objetivo de arte que tem inclusive nos dicionários é que ela é uma habilidade, um talento. E visual é aquilo que a gente vê. Pode ser o mundo real ou aquele que a gente imagina entende? Resumindo: Arte Visual é um conjunto de artes que representam o mundo real ou imaginário. É pintura, desenho, escultura, arquitetura, cinema, fotografia e por ai vai.
—Antes eu pensava que arte fosse só pintura. Quanta ignorância. —D. Esmeralda confessou rindo com a mão na boca.
— Quando eu era pequena também pensava assim. — Lívia disse recordando do tempo que inventava de pintar quadros com guache ou fazer desenhos com lápis Regente. —Mas depois vi que era algo bem mais amplo. Quando a gente representava peças de teatro na escola, a professora explicou que era arte. E também quando a gente fazia colagens. A gente fazia até esculturas de barro e a professora explicava que era tudo arte. Mas eu gostava mesmo era de pintar e desenhar.
— Sabe mamãe, é interessante como temos ideias erradas sobre a arte. Às vezes pensamos que envolve só o belo. Mas sabia que, além da beleza, ela pode representar o feio? Que além de transmitir sentimentos e crenças, transmite também visões críticas de realidade que nem sempre é agradável às pessoas?
— Verdade Lívia?
—Sim. Verdade. A senhora se lembra de quando fomos com papai ao Museu de Arte de São Paulo e ficou chocada com aquele quadro enorme que representava uma família em situação miserável?
Esmeralda fitou os olhos num ponto qualquer do tempo como se recordasse.
— Sim... Lembro-me... Você tinha treze anos e já sonhava em estudar Artes. Ficava maravilhada com tudo que via naquelas galerias. Inclusive esse tal quadro que, eu vou te confessar, achei feio e muito triste.
— Está vendo mamãe? A arte nem sempre é um ideal de beleza. Ela trás em si também o feio, o que nos deixa chocados.
— Aquele quadro Lívia... Tinha a ver com as pessoas que fugiam da seca no Nordeste não é? Lembro-me que o guia nos disse.
— Sim, mamãe. É uma tela de Cândido Portinari pintada em 1944. Chama-se “Retirantes” e representa uma realidade do povo nordestino fugindo da seca.
D. Esmeralda concordou com a cabeça e apontou para o livro grosso que Lívia segurava nas mãos.
— Esse livro fala de tudo isso?
—Sim... Fala... —Lívia descansou as mãos sobre o livro. — Fala o que a Arte Visual significava em cada tempo e também o estilo de cada artista. A arte de um modo geral sofre influencia de cada tempo.
—Como a Literatura... — D. Esmeralda citou. —Os romances de Machado de Assis, por exemplo, eram do tempo do Realismo em que os escritores escreviam histórias do que jeito que eram na realidade, sem muito sentimentalismo. Lembro-me de você me explicar.
— Justamente mamãe...
—Estava aqui pensando Lívia, se a moda não é arte...
—A moda integra a arte sim mamãe. E quem falou isso foi uma estilista que já nem lembro o nome.
—Então costurar também é?
—Mas é claro mamãe. Pensar o modelo de uma roupa, desenhar e depois reproduzir é tudo arte. Imagine todo o talento para criar um modelo, um estilo, inventar estruturas, usar cores, materiais diversos. É arte sim e você é uma artista. Diga-me se não é arte aqueles vestidos lindos de festa e de noiva que a senhora faz?
D. Esmeralda concordou, e, por instantes, com ar saudoso disse:
—Verdade minha filha. Lembra-se do vestido que fiz para você ir ao seu baile de formatura do ensino médio?
—Como esquecer aquele vestido mamãe? — Lívia fez um ar saudoso. —O tema da festa era os anos 50 e eu fiz tanto sucesso com aquele vestido vermelho de bolas pretas tomara que caia e com saia godê. Ainda usei uma espécie de anágua preta que dava volume ao vestido e aparecia um pouco na barra. Minhas amigas me perguntavam quem tinha feito o vestido e eu dizia com orgulho: minha mãe. E elas respondiam: nossa, sua mãe é uma artista. Nunca dancei tanto Rock and roll na vida — Lívia se levantou rindo e ensaiou alguns passos e fingindo segurar uma saia invisível.
D. Esmeralda também ria da euforia da filha.
—E o vestido de casamento da Aninha então mamãe? A senhora se superou.
—Verdade filha. Custo acreditar que fiz aquele vestido de princesa cheio de rendas e bordados e aquela saia volumosa e pesada. — D. Esmeralda suspirou— E você com apenas dez anos me ajudou a pregar aquelas minúsculas pérolas.
—Vou te confessar mamãe: detestei pregar aquelas pérolas todas — E ambas riram.
—Sabe Lívia, quando minha mãe me ensinou a costurar, a máquina de costura me assustava. Parecia um mostro. Espetei tanto o dedo nas agulhas e quebrei muitas também. —D. Esmeralda confessou rindo— Mas depois fui acostumando e, com o tempo eu percebi que ela não tinha nada de monstro, mas de alguém com quem eu me desabafava.
—Costurar para você, além de uma necessidade, era uma terapia... —Lívia completou para a mãe.
— Sim. Era... — E de repente, ela sentiu falta de costurar. Estando doente, ela havia abandonado tudo.
— Logo voltará a costurar mamãe. — Lívia pareceu adivinhar os pensamentos da mãe e garantiu .
— Não sei filha. Tinha esperanças de fazer seu vestido de noiva. — disse olhando para a filha com olhos tristes. — Mas quanto a você minha menina, logo retornará para a Faculdade de Artes. — D. Esmeralda disse por fim batendo nos joelhos da filha. —Eu prometo.
CONTINUA...
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