FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 23
RARAMENTE SR. LOPES IA À IMOBILIÁRIA. ISSO acontecia quando precisava assinar papéis ou resolver alguma outra coisa extraordinária. Mas geralmente ia ao início do mês para uma reunião de prestação de contas com seu administrador.
Naquela manhã, portanto, como não era início de mês, ele havia aparecido apenas para assinar alguns papeis e aguardava o administrador em sua sala enquanto corria os olhos por algumas planilhas. Ao toque na porta, que era uma espécie de código entre ele e sua secretária, para casos , digamos, extremos ou não programados, ele fechou a planilha e aguardou. A secretária entrou em seguida.
—Algum problema Srta. Judith?—perguntou com certa apreensão.
— Sua neta quer vê-lo. — A secretária foi direto ao ponto.
— Minha neta? — Sr. Lopes tinha um olhar incrédulo que assustou a secretária. Não ousou se levantar, pois com certeza suas pernas lhe negaria o sustento mesmo se apoiando em sua bengala de caminhada.
— Vinte e dois anos inúteis... — Sr. Lopes disse para si mesmo sentindo que já não era mais possível fugir de seu passado. Ele havia ido ao seu encontro e não era um acaso. Era a purgação dos erros cometidos. Engana-se quem pensa que as penas se prescrevem.
Sr. Lopes só não sabia se estava preparado para encarar coisas das quais tinha fugido a vida inteira. Tinha chegado o momento. Enquanto observava de longe era até mais fácil, porque ele podia fugir como fizera nas várias vezes que ficara observando a antiga casa da Rua Tonelero. Mas agora era o momento da acareação. O ato processual em si mesmo.
Pela primeira vez sentiu-se fraquejar e teve medo. Justo ele que sempre desprezara a fraqueza. Teve medo de enfrentar as suas falhas que agora lhes eram mostradas como se o Livro da Vida estivesse aberto diante de si. Ele teve medo de tropeçar em seu próprio orgulho e cair.
Institivamente Sr. Lopes segurou sua bengala de caminhada, mesmo estando sentado.
A secretária percebendo que Sr. Lopes estava muito incomodado e temendo por sua saúde que não estava muito boa nos últimos tempos sugeriu:
—Posso mandar a moça embora— E foi se virando para sair.
— Não... — Sr. Lopes levantou a mão no ar. — Vou recebê-la. Eu devia saber que esse dia chegaria mais cedo ou mais tarde. É chegada a hora. — Disse por fim. — Mande-a entrar.
Quando Lívia atravessou a porta e entrou no escritório do Sr. Lopes, encontrou um velho de mais de oitenta anos com o olhar fixo na porta esperando-a. Ele tinha os traços de seu pai, só que com as marcas profundas do tempo. Os cabelos brancos contrastavam com o suéter azul marinho que usava.
Lívia ficou parada por instantes segurando a maçaneta da porta, tentando buscar e até mesmo criar, memórias que jamais tivera desse avô que julgava morto. Memórias que, por orgulho, a família havia negado a ela.
Por outro lado, Sr. Lopes viu diante de si uma jovem bela com traços jovens de sua esposa Leonor. O passado batendo-lhe no rosto como o vento de inverno. De um jeito que chegava doer. Era a complexidade da vida cobrando uma fatura com valor alto demais de juros e multas.
Reunindo toda a coragem que pensava ter, Sr. Lopes se levantou apoiando-se em sua bengala. Em dado momento vacilou segurando na mesa e Lívia largou a maçaneta e correu para ajudá-lo.
—Sr. Lopes... Está sentido alguma coisa?
—Sim... — admitiu olhando para Lívia— Estou sentindo algo terrível. Algo que nunca senti antes.
— Meu Deus... —Lívia estava apavorada perante a ideia de seu avô sofrer um infarto ali diante dela. Não queria ser responsável por sua morte. — Vou chamar a secretária. — virou-se para sair.
— Não... — Sr. Lopes a impediu, segurando com força seu braço. — Não é nada físico menina. Fique tranquila.
— Mas então... — Lívia não estava entendendo.
— O que sinto é na alma— confessou. — Tem coisas do passado que voltam para nos jogar na cara os erros que cometemos. — falou, dessa vez olhando nos olhos de Lívia.
— Estranho... Minha mãe disse ontem, exatamente essas palavras. — Lívia falou olhando para o rosto marcado do Sr. Lopes.
— Sua mãe?— O avô de Lívia pareceu refletir. — Isso prova que ela sabe das coisas. E como ela está?— ousou perguntar como se isso fosse algo banal que o sogro pergunta da nora.
— Isso importa para o senhor? —Lívia perguntou ajudando o Sr. Lopes a se sentar numa poltrona perto de uma janela aberta. Estava frio, mas ele não queria saber de aquecedores e muito menos de janelas fechadas. Ele gostava do vento frio de inverno.
Sr. Lopes não respondeu à pergunta de Lívia até porque nem saberia respondê-la. De repente lhe pareceu estranho ser amparado pela neta, cuja existência só soubera há poucos dias. Poderia até ser normal. Mas não no seu caso.
—Como você me aparece assim do nada depois de tantos anos menina?— Sr. Lopes falou quase para si mesmo. — Eu nem sabia de sua existência.
—Não sabia porque renegou o próprio filho e sua nora. —Lívia atirou-lhe na cara a sua culpa. No entanto, ela não sentia raiva, apenas um sentimento de perda.
—Você está certa. — Sr. Lopes fitou o tapete indiano com suas listras horizontais em tamanhos diferentes e em três tons de bege. Parecia um enorme gráfico de estatísticas. O que combinava com aquele ambiente, onde, com certeza, o que mais importava eram os resultados.
—Eu cresci pensando que estivesse morto. — Lívia disse sentando-se ao lado dele.— Só fiquei sabendo ontem que o Senhor está vivo
— E então veio se certificar... —Sr. Lopes tentou colocar certo cinismo na voz. Mas naquele momento nem isso combinava mais com ele.
Dentro de si uma parte queria se alegrar por ter sua neta bem ali diante dele, mas outra parte queria também desconfiar. Pessoas como ele vivem em mundos onde as pessoas só pensam em aproveitar. Quem poderia dizer se aquela menina não estava atrás apenas de herança?
— Sim... Eu vim me certificar... —Lívia confessou, adivinhando os pensamentos do avô. — Mas não pense que vim para ser reconhecida Sr. Lopes. Pode ficar tranquilo. Não espero reconhecimento algum. Ainda mais depois de conhecer toda a história que envolveu minha família. Eu só vim para entender tudo que aconteceu.
—E vim também... — Lívia deu uma pausa e depois continuou. —Vim também para me certificar como seria a figura de um avô, pois cresci com a imagem de um avô me oferecendo um amor incondicional sabe? Cheio de bondade, paciência, humor, lições de vida. — E Lívia ia enumerando tudo que Sr. Lopes havia lhe negado com seu orgulho.
— E depois... Não é todo dia que um avô ressuscita depois de tantos anos. —E nesse momento Lívia ensaiou um leve sorriso que ela não soube dizer se havia cinismo ou alegria.
Quando olhou para o avô percebeu que seus olhos estavam molhados. E ela quis acreditar que avô nenhum resiste a um neto. Nem mesmo o Sr. Lopes.
Houve um instante de silêncio entre eles. Uma espécie de espaço mental necessário. Então Sr. Lopes finalmente falou:
—Menina, tem coisas que são difíceis de explicar e entender — Ele se sentia envergonhado e abatido diante de Lívia. — Mas garanto-lhe que a história que sua mãe contou é a mais pura verdade. E prefiro não justificar nada. Nem me defender. Apenas reconheço que errei.
— Mas porque tudo teve que tomar um rumo tão triste? — Lívia questionou. —Por que não tentaram consertar as coisas? Tanto sofrimento e dor sem sentido...
—Por orgulho... — Sr. Lopes a interrompeu. — Sim, por orgulho. Esse sentimento tem muitas facetas menina. — Sr. Lopes falou com o olhar fixo no quadro com imagem abstrata na parede de frente. Lívia seguiu seu olhar.
— Como aquele quadro... Suponho. — Lívia comentou observando aquele emaranhado de linhas, círculos, retângulos e triângulos criados em cores primárias que fugiam à representação de qualquer realidade exterior.
—Sim... Como ele... — Sr. Lopes respondeu. —Sempre fico intrigado com esse quadro. Não parece representar nada. Mas no fundo representa a alma. Acho...
— “A alma humana, tocada no seu ponto mais sensível”— Lívia respondeu e Sr. Lopes desviou os olhos da tela para Lívia.
— Na verdade, essa frase é do artista russo Wassily Kandinsky. Ele resume essa tela nessa frase. Ele a pintou em 1866. Esse ai com certeza é só uma releitura. O nome do quadro é “Amarelo-Vermelho-Azul”, as cores primárias que ele usou para pintar essa tela. Ele certamente queria chamar a atenção para os efeitos psicológicos que as cores e as formas exercem na alma das pessoas.
—Como você sabe disso?— Sr. Lopes olhou admirado para Lívia.
—Faço graduação em Artes— explicou diante do olhar cada vez mais admirado do avô. —Pelo visto, o senhor também gosta de Artes. —Lívia também estava admirada com esse lado do avô que o colocava em um patamar mais humano porque, a arte de alguma forma humaniza as pessoas.
— E o quadro, assim como o orgulho a que o Senhor se referiu, tem sim muitas facetas e, embora fuja da realidade externa, não foge da realidade interna das pessoas.
Sr. Lopes concordou com Lívia com um movimento de cabeça. Na verdade estava admirado cada vez mais com a neta que ele tinha renegado quando renegara o próprio filho.
— Eu não sei explicar porque o orgulho toma conta da gente de um jeito que nos torna cegos. Se é porque somos fortes demais ou porque somos fracos demais. Não sei... — Sr. Lopes admitiu. Algo que jamais fizera na vida.
— O que sei é que às vezes só nos resta endurecer ainda mais o coração para conseguir seguir em frente. Entende?— O olhar de Sr. Lopes tinha tristeza e amargura. — Não é o certo. Hoje vejo isso. Mas é o que a gente sempre faz para sobreviver mesmo sabendo que não é o certo. Talvez porque seja mais fácil do que admitir um monte de coisas. E foi o que fiz e penso que foi o que seu pai fez e sua mãe também. E acredito que você também o fará em algum momento de sua vida.
Lívia ficou em silêncio, pois sabia bem o teor daquelas palavras do avô. Sim, certamente ela endureceria o coração para seguir em frente em algum momento de sua vida. Na verdade, já fizera isso um dia atrás quando tirara Arthur de sua vida sem ouvir as suas explicações. E, talvez fizesse isso ali bem diante do avô deixando que a mágoa impedisse de abraçá-lo e certamente faria quando o câncer levasse sua mãe.
A contragosto Lívia compreendeu o avô. Como julgá-lo quando ela mesma nutria os mesmos sentimentos dele? Ela não tinha direito de fazer isso e muito menos de lhe aplicar uma pena, pois a própria vida já tinha feito isso. Ela via diante de si um velho curvado pelo ocaso e pelo peso da consciência e isso já purgava todos os seus pecados.
Quando se levantou para ir embora, Sr. Lopes a deteve tocando-lhe levemente o braço.
— Seria muito pedir seu perdão... — Havia súplica em seu olhar, mas ele sabia que era pedir muito. Lívia não respondeu. Apenas disse:
—O Senhor teve a oportunidade de nos procurar. E preferiu ficar de longe observando... E pior... Depois de nos descobrir, quis nos despejar daquela casa.
— Quando te vi lá tão parecida com sua avó eu tive medo porque a vida cobra um preço alto pelos nossos erros. — Sr. Lopes admitiu. — Mas como te falei, não adianta eu me justificar. Apenas reconheço que errei.
Lívia apenas o olhou. Não, não era fácil perdoar. Era mais fácil endurecer o coração. O sofrimento e a dor se tornam menores. Pelo menos uma parte dela pensava assim. Ela imaginou a dor que Sr. Lopes havia causado ao seu pai e sua mãe.
— Não teria sido mais fácil ter aceitado minha mãe? Teria evitado tantos conflitos e sofrimentos...
— Sim... Teria sim... — Sr. Lopes admitiu baixando os olhos como se procurasse as palavras certas. Só que era difícil encontrar.
— Agora que vejo você aqui na minha frente... —Sr. Lopes reuniu coragem para olhar os olhos de Lívia. — percebo sim que poderia ter evitado muito sofrimento e vivido bons momentos.
Sr. Lopes também se levantou apoiando com dificuldade na bengala. Seu olhar buscava o de Lívia—Não quero me justificar de nada. Já disse. E nem posso exigir que me perdoe. — caminhou lentamente de volta à sua mesa.
Lívia ficou ali parada por um instante mais. Uma parte dela tinha se derretido diante da imagem do avô. Mas outra parte dela, ainda maior, talvez, teimava em se manter endurecida e não era fácil lidar com esses dois sentimentos.
— O orgulho tem muitas facetas... —pensou nas palavras do avô, mas em voz alta disse:
—Preciso de um tempo...
—Está certo. — O avô assentiu, porém disse:— Eu, contudo, já não tenho muito tempo.— E ficou olhando para Lívia que já segurava a maçaneta da porta.
Então Lívia e o Avô ficaram se olhando por alguns segundos como para gravarem em suas mentes, talvez, a primeira e a última imagem um do outro.
CONTINUA...
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