FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 22

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NA MANHÃ SEGUINTE AO ROMPIMENTO COM ARTHUR E às tantas descobertas sobre sua história, logo depois do café, Lívia vestiu um suéter de tricô azul royal, uma velha calça jeans Mom Basic; calçou as botas coturno de sempre; ajeitou os cabelos debaixo de uma touca de tricô na cor caramelo e no pescoço uma pashmina xadrez também em tons de caramelo. Como estava bastante frio, pegou ainda seu casaco também em tom caramelo e saiu depois de certificar-se de que sua mãe estava bem.

— Mamãe... — Lívia chamou da porta do quarto. A mãe havia tomado o café da manhã na cama, pois estava ainda muito debilitada. — Preciso sair para resolver umas coisas. Não pretendo demorar. 

— Vou ficar bem... — A mãe respondeu virando-se na cama e sabendo exatamente onde Lívia iria— Não se preocupe...

Lívia aproximou-se e beijou-lhe o rosto. Quando já estava na porta, Lívia enviou mais um beijo para a mãe e sorriu.

—Lívia... —D.Esmeralda a chamou quando a filha já ia fechar a porta.

—Sim mamãe... —Lívia deu um passo à frente preocupada. — O que foi?

— Eu entendo que você precisa fazer o que vai fazer. —disse por fim. —Mas queria te pedir que não cometa os mesmos erros que sua família.

Lívia ficou olhando um tempo para a mãe que se virava novamente para o canto da cama e depois saiu com o coração apertado por deixá-la sozinha. Mas ela precisava procurar o avô. Não podia deixar de fazer isso. Não depois de ter conhecido toda a história de sua família e descoberto que ele ainda estava vivo.

 

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Lá fora o vento frio de julho castigava e açoitava os galhos das árvores, desnudando- as ainda mais do que já estavam.  Lívia seguiu até o ponto de ônibus.

No dia anterior, ela havia decidido ser forte e não ficar remoendo suas dores. Arthur para ela, já era um passado que ela pretendia apagar. O tempo que pedira a ele havia sido um erro. Não queria ter dado esperanças a ele e nem mesmo a ela própria. Não era momento para alimentar certos sentimentos enquanto sua mãe lutava pela vida. Sua mãe precisava dela. Resumindo, ela não queria ser egoísta e pensar nela, mas dedicar-se completamente à mãe, pois a intuição lhe dizia que seus dias estavam contados.

No entanto, Lívia sabia que, por mais que conseguisse afastar seus sentimentos traumáticos, eles ficariam alojados nas zonas de conflito de sua memória porque é impossível apagar de vez um trauma. Ela sabia porque já havia lido as teorias do pensamento de Augusto Cury. Por isso, à noite, durante sua insônia, ela se esforçara para trabalhar a sua mente para que ela reagisse de outra forma diante de sua memória negativa. Ela conseguiria fazer isso todos os dias de sua vida? Porque não estava sendo fácil.

Foi por isso que, de repente lhe veio à mente alguns versos do poema “Magnificat” de Álvaro de Campos e ela os recitou em voz alta olhando o teto na penumbra na noite anterior.

— “Quando é que passará esta noite interna, o universo, e eu, a minha alma, terei o meu dia? Quando é que despertarei de estar acordado?”

E foi assim que conseguira dormir. E acordara decidida a procurar o avô.  Era a única forma de responder aos questionamentos explícitos nos versos de Álvaro de Campos e que tinham tudo a ver som seus próprios questionamentos.

 Lívia sabia que, naquele momento, além de cuidar da mãe, ela precisava também enfrentar a sua história.  E enfrentar aquela história significava enfrentar o avô que ela julgava morto. Ela não queria fugir como fizera sua mãe, seu pai e seu próprio avô...   Ela ainda não sabia como agir. Sabia apenas que precisava enfrentar. Procurar o avô era, portanto, uma questão de honra.

—Não posso deixar essa história assim... Inacabada. — disse para si mesma. —Preciso procurar meu avô sim. Por mim, meu pai e minha mãe. E também por meu avô.

O vento frio entrava pela janela aberta do ônibus e agitava os cabelos de Lívia e machucava a pele de seu rosto. Mas Lívia gostava daquela dor fria que a fazia lembrar que estava viva e precisava mudar o rumo daquela história de mágoas de sua família. Cada fragmento dessas mágoas parecia tão fatídico que Lívia se via no meio delas como se estivesse debatendo em alto mar para salvar sua família que morria afogada pelo orgulho. Ela precisava alcançar logo a praia ou algum recife.

Por isso Lívia estava naquele ônibus rumo à Imobiliária que pertencia ao Sr. Lopes, seu avô. Era o ponto de partida, pois não sabia onde ele morava. 

O vento assoviava quando Lívia desceu duas quadras antes da Imobiliária. Ela levanta a gola do casaco e segue caminhando pela rua devagar como se medisse os passos ou os retardasse. Talvez ela apenas quisesse mais tempo para pensar no que ia fazer. Não que estivesse desistindo. Ela só queria fazer o certo.

 

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O coração de Lívia bateu forte quando ela atravessou o pequeno jardim de entrada da Imobiliária, cuja forração dos dois únicos canteiros, eram mini árvores com suas copas redondas e verdes apesar do inverno. Atravessou uma porta de vidro que centralizava uma parede também de vidro e entrou na espaçosa sala de recepção com piso de granilite em tons branco e cinza e um enorme sofá terracota, moderno e de linhas retas, assim como a mesa do centro cheia de revistas e jornais. Na parede bem acima do sofá havia um quadro com detalhes geométricos nos mesmos tons cinza e terracota sobre um fundo branco.

Lívia se aproximou decidida do balcão de mármore White Thassos, um mármore branco puro extraído da Grécia. O designer, diferente ficava por conta das formas diagonais cheias de pontas geométricas praticamente em toda a extensão, exceto do lado esquerdo onde ficava o logotipo da Imobiliária com letras caixa em acrílico também na cor terracota. 

A Imobiliária Lopes, sob a administração do Sr. Lopes, mais que seu falecido tio e padrinho, havia aumentado o status e poder. Além de administrar os inúmeros imóveis que possuía, bem como realizar compras e vendas, Sr. Lopes se transformara aos poucos em um investidor em potencial através dos chamados aportes, uma atividade do mercado financeiro que pode ter diversos fins, inclusive o social. Mas para Sr. Lopes, o fim era meramente financeiro e visava sempre maximizar a rentabilidade da sua carteira, aproveitando para isso as oportunidades na bolsa de valores. E assim ele conseguira aumentar cada vez mais suas posses e status.

 

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— Quero falar com o Sr. Lopes. — Lívia se dirigiu com voz decidida a uma moça de óculos grandes com armação quadrada e aros grossos, o tipo clássico do universo nerd, porém com toque glam que o deixava mais fashion. Ela usava também os cabelos presos em um rabo de cavalo posicionado do meio da cabeça para baixo e se vestia formalmente com camisa branca, saia e blazer de alfaiataria cinza e logotipo com escritas terracota. Pelo visto o dress code da Imobiliária era rígido e conservador.

—A Senhorita fez agendamento para ser atendida? Qual seu nome? —E foi logo pegando sua agenda de capa dura azul marinho e com letras douradas.

—Na verdade não... —Lívia sabia que enfrentaria esse tipo de problema, afinal a Imobiliária era uma grande empresa.

—Sinto dizer, mas qualquer assunto desta empresa é tratado com o administrador e precisa ser agendado. — A recepcionista foi direta.

— O assunto que preciso tratar com o Sr.Lopes não está relacionado à empresa. — Lívia respondeu com um gosto amargo na boca e as mãos frias.

—Não?— A moça levantou as sobrancelhas semiarqueadas que deixava a expressão de seu rosto um pouco tensa. — Qual o assunto então? É pessoal? Porque se for, deve ser tratado com Dr. Fonseca, o advogado dele— O olhar por cima das lentes media Lívia dos pés à cabeça.

— Sou a neta do Sr. Lopes. — Lívia despejou na cara da moça que parecia decidida a seguir à risca os protocolos da empresa.—Preciso marcar hora para ver meu avô?

A recepcionista, diante da apresentação de Lívia, deixou algum objeto cair no chão. Por fim, tossindo questionou:

—Neta?— A voz saiu arrastada e rouca.

— Sim... Neta... — Lívia repetiu. — Pode me levar até ele, por favor?

—Espere... Um minuto... — pediu a recepcionista toda atrapalhada, o que  colocava em dúvida seu profissionalismo de minutos antes. Afastou-se até uma mesa próxima e falou com um moço que estava guardando papéis em um arquivo. Ele veio até Lívia e pediu que o acompanhasse.

— Vou te levar até a secretária particular do Sr. Lopes.  — E subiu o elevador até o quarto andar com Lívia seguindo-o.

—Você está com sorte. — O moço também vestido com calça cinza e logotipo terracota no bolso da camisa social branca falou saindo do elevador com Lívia e entrando em um escritório com decoração moderna, desde os móveis até os quadros na parede e outros objetos de arte. — Não é todo dia que o. Sr. Lopes vem aqui. Geralmente vem uma vez por mês.

O moço dirigiu-se à secretária vestida também no estilo Business Professional e digitava alguma coisa em um laptop.

— A neta do Sr.Lopes quer vê-lo.

—Neta?— A secretária levantou os olhos para o moço. —Não sabia que ele tinha uma.— E desviou o olhar para Lívia tentando se convencer.

—Sim sou a neta dele. —Lívia finalmente falou — Anuncie-me e ele saberá. — A tensão tomando conta de seu ser.  Teve ímpetos de sair correndo dali e esquecer de vez aquela história. Mas ela sabia que não tinha mais como voltar atrás. Ela precisava enfrentar seu avô.

—Aguarde um momento... —A secretária um tanto quanto indecisa se levantou e se dirigiu a uma imensa porta. Deu dois toques leves e entrou em seguida fechando a porta atrás de si. Minutos depois, mas que pareceram eternos para Lívia, a secretária saiu com seu andar sofisticado e um excesso de fineza que beirava o orgulho. Contudo, os Mocassins de salto alto e grosso pisavam o chão como se temessem alguma coisa.

— O Sr. Lopes vai recebê-la. — A secretária dirigiu-se à Lívia. E depois de olhá-la de alto a baixo como se avaliasse seu visual nada sofisticado, lhe indicou a porta semiaberta. —Ele a está guardando.

Lívia agradeceu a secretária e caminhou até à porta do escritório de seu avô. Não tinha mais volta. Dali a poucos segundos ela estaria diante do avô como sempre sonhara desde menina.  Se a situação fosse outra, certamente ela abraçaria o avô e lhe beijaria o rosto cheio de rugas e de experiências do tempo. Avô tem dessas coisas: rugas e experiência. E experiência por sua vez, torna os avós mais sábios. Mas seria mesmo isso que Lívia encontraria no avô que nunca vira até então? Rugas, talvez... Mas e sabedoria? Ela desconfiava que seu avô não tivesse sido uma pessoa sábia ao longo de sua vida. Prova disso foram todos aqueles desencontros causados desde o dia que deserdara o filho.

No limiar da porta Lívia parou e suspirou como que se preparando e depois entrou. 

 

 

CONTINUA...

 


 

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