Fragmentada

Luzes apagadas na cidade, o único barulho é o do fluxo leve de carros logo abaixo de mim, como se fosse a correnteza de um rio. A sensação do vento batendo nas minhas bochechas me remete a uma vida boa que tive.

Eu tinha uma casa, um marido, dois lindos cachorros e uma carreira em ascensão.

Então, tudo desmoronou, e eu caí em um buraco infinito. Assim, aquela vivência colorida passou a ficar cinza e sem graça. Os dias, que eram super corridos, agora parecem não ter fim.

Não sinto dor, não mais. Também não tenho fome ou sede, choro ou riso - estou vazia. É como se eu estivesse anestesiada, pronta para dormir sem previsão de despertar.

As pessoas ao meu redor não entendem o que há de errado. Queria poder explicar a elas que nem mesmo eu sei o que há de errado comigo. Não consigo expressar o tamanho do buraco em que estou, ou mesmo que não tenho vontade de sair dele. Elas apontam e julgam, me obrigando a deixar esse torpor de lado com a desculpa de que há coisas piores no mundo, como a fome, morte e miséria. "E quanto à minha miséria?" quis gritar uma vez para elas, mas minha voz não saiu...

Mais um dia de reunião com os "amigos": uma infeliz comemoração para a qual fui arrastada com o pretexto de que "arejar as ideias e ver pessoas me fará bem". Geralmente consigo suportar o tédio e a vontade de mandá-los à merda, mas por algum motivo não consegui hoje: me levantei e saí no primeiro brinde.

Saindo de lá, corri por horas a fio, deixando o celular descarregar após diversas ligações.

Enquanto corro,flashbacks passam diante de mim e trazem à tona memórias que enterrei.

Meus pés doem, e tenho sede, mas tem algo prazeroso nessa tortura, porque por alguns minutos sinto meu corpo vivo novamente: respiração ofegante, pulso acelerado, suor escorrendo...

Paro em frente a um conhecido prédio industrial, e sorrio.

Subo até o terraço e me deparo com a vista da cidade ao redor dormindo tranquila.

As lembranças ainda me atormentam e isso me causa um misto de mágoa e desdém pela pessoa que fui.

Ando pelo lugar rindo como se estivesse bêbada - talvez eu esteja embriagada, sufocada pela dor que de repente sobe pelo peito e enche meus pulmões.

Inspiro e solto o ar com força e raiva. Meus olhos lacrimejam, e de repente soltam uma torrencial chuva de lágrimas.

E tudo vem à tona: o desespero, a dor, o abandono...

Fico atônita com a inesperada onda de ressentimentos, e corro em direção ao parapeito do espaço aberto e fico parada por alguns minutos desejando que aquela onda de sentimentos inoportunos desapareça.

Fecho os olhos,inspiro profundamente e na minha cabeça só passa uma coisa: " não quero sentir mais nada"...

E ao dar o último passo, eu mergulho na penumbra da noite, em direção ao abismo silencioso.

Amanda Brasiliano
Enviado por Amanda Brasiliano em 06/03/2024
Código do texto: T8013819
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