Sol Poente
Ângela era uma nipo-brasileira de vinte e muitos anos. Nascida no final dos de 1990, interessou-se por seu país de origem não por conta da vida familiar, seus pais eram nissei que se integraram tanto ao Brasil que sequer falavam japonês em casa, mas por conta da profusão de animes que passavam na televisão no final da década de 1990 e começo dos anos 2000. Por mais ridículo que fosse, ainda tinha um encantamento com a estação Granja Julieta da Linha 9 Esmeralda da CPTM em São Paulo por ela ter servido de cenário para a gravação do clipe “A Força do Mestre” na época do auge de Pokémon. O seu interesse por animes era mais que algo genuíno de uma criança que acompanhava a programação televisiva com constância, era também uma identificação com a cultura de um país que se fazia representar nas suas veias e no seu fenótipo, era o seu empoderamento pessoal com o protagonismo emprestado de uma indústria de um país muito distante, pouco integrado ao Brasil em um contexto de globalização ainda muito inovadora. A única coisa imagética que tinha em sua casa sobre o Japão, porém, era uma foto em preto e branco da Asazuka na recepção da sala de estar, algo que seus pais incoerentemente mantinham, mesmo se considerando mais brasileiros do que japoneses.
Autodidata em japonês, evidentemente que nascer em uma família de origem nipônica, mesmo que descostume, a ajudou a chegar a um nível de excelência mais rapidamente, trabalhava para uma agência de publicidade de Toyota, que ironicamente atendia a uma série de montadoras japonesas de alcance global como Honda, Nissan e Yamaha, mas não atendia à Toyota. Inclusive, como pode fugir do corolário lógico, o nome desta montadora não faz referência necessariamente à cidade, mas ao patronímico da família fundadora do conglomerado.
O Japão é um dos países que mais carece de capital humano no mundo há décadas. Preço do seu desenvolvimento industrial muito alígero no século XIX. Por razões muito mais complexas e muito acima de Ângela e seus colegas de trabalho, a integração com profissionais estrangeiros se fazia prioridade nas ordens do dia de autoridades japonesas dia sim, dia também. Por isso Ângela conseguira mais facilmente um emprego do outro lado do mundo do que no seu próprio país. Recém-formada, “bastou” se inscrever em uma agência de recrutamento no Japão, chamada “RGF Professional Recruiment”, com seu currículo traduzido para inglês e japonês e atestar sua desenvoltura no idioma estrangeiro a partir de teste de proficiência, o famigerado “JLPT – Japanese-Language Proficiency Test”, e pronto: ela se tornou profissional Analista de Planejamento de Mídia para o Setor de Empresas de Alimentação. Detalhe: ela exercia essa profissão remotamente, continuando a morar no Brasil, possibilidade avolumada devido aos caracteres da vida laboral japonesa na década de 2020 do século XXI, o país passara por uma pandemia provocada por um agente etiológico que desvelou parte da xenofobia ocidental contra países do Extremo Oriente que relaxou o rígido comportamento japonês na necessidade dos escritórios, além disso o governo incentivava fortemente por meio de subsídios e regulamentos que no Japão as pessoas fossem “menos profissionais”. Tratativa para tentar aumentar os níveis de consumo de produtos e serviços pela economia interna, e principalmente incentivar um incremento na taxa de natalidade.
Ângela adorava o emprego, mesmo com as dificuldades, que não eram escassas. Era extremamente difícil acompanhar a programação de canais como “NHK”, “Nippon TV”, “Chiba TV”, “Fuji Television”, “Mainichi”, “TV Tokyo”, “TV Osaka” e “WOWOW”, algo essencial para o seu trabalho, morando do outro lado do mundo, quiçá das suas audiências. Pior era a produção de relatórios sobre análises mercadológicas, comportamentais e consumeristas de um país que sequer estivera uma única vez que fosse pessoalmente. Mas o pior de tudo era o horário de trabalho. Sua rotina precisava ser feita no horário comercial a partir dos relógios de Tóquio. Começava a trabalhar de domingo à quinta a partir das 20h00, terminava no dia seguinte lá pelas 7h00. No horário que todo mundo a sua volta, seus familiares, seus vizinhos, seus amigos e seus conhecidos, se recolhiam para o descanso e para o lazer, ela começava a trabalhar. Ela iniciava o dia no crepúsculo e jantava na hora do desjejum. Mais radical que isso só se seu horário de trabalho fosse baseado no fuso horário da Lua.
Evidentemente que essa rotina insólita custou muita saúde conforme os meses de trabalho se sucediam, piorados pela mistura da sua vida pessoal com a profissional na medida que praticamente não tinha mais mesa ou cama, trabalhando de casa por sequer ter disponibilizado um escritório para si em São Paulo, também pudera, sua empresa era em Toyota, muitos dos seus colegas tinham como maior estereótipo do país o Rio de Janeiro, cidade que ficava em uma distância de mais de 600 quilômetros de onde Ângela levava sua vida. Performar ficava cada vez mais difícil na medida que suas demandas apenas aumentavam e sua qualidade de vida apenas se deteriorava. Chegou a sonhar com trabalho, sobremaneira que não se sentia nem uma hora descansada em determinados momentos. Ela sentia que tinha se transformado em uma escrava, e mesmo assim tinha consciência que não podia largar aquela oportunidade, sempre fingindo sorrisos nas reuniões em teleconferência. Ela decidiu apenas solicitar uma reunião para tratar de uma eventual transferência para o Japão no momento que percebera não estar mais em plena capacidade de discernir entre os sentidos. Seu estresse pessoal e profissional era tamanho que falava de maneira mais seca, extenuada ficava só de elaborar muito o que dizer, por isso preferia a síntese e a mondação.
Essa reunião não foi de pronto atendimento, demorou alguns dias. Ela se reuniu virtualmente com uma europeia de meia idade nomeada Marina apenas quando a sua estafa começara a se fazer manifestada na sua queda de rendimento. Marina e Ângela compartilhavam apenas a qualidade de serem estrangeiras ocidentais trabalhando remotamente para uma empresa japonesa. Marina era italiana e morava em Turim, mas sua hereditariedade era o símbolo de uma Europa mais integrada e mais internacionalizada dentro dos limites do Oceano Atlântico. Seu pai era italiano, mas ficara radicado na Inglaterra após o divórcio. Sua mãe era portuguesa, caractere que permitia também ser influente em português, algo essencial nas conversas com Ângela, haja vista português ser um idioma ocidental. O fuso horário europeu, o turno em meio-período e o cargo de Superintendente de Planejamento de Mídia para o Setor de Empresas de Alimentação, Agricultura e Indústria conferiam à Marina uma vida com muito mais qualidade e muito menos estresse se comparado com a vida de Ângela. A vida de Marina era melhor no cômputo geral também fora do trabalho. Enquanto Ângela tinha um Transtorno Explosivo Intempestivo não diagnosticado e, portanto, mal remediado, Marina conseguia ter uma vida bastante prazerosa, com bastante excitação e exercício pleno dos seus direitos e da sua sexualidade. Marina, assim como grande parte dos europeus de países de maior desenvolvimento industrial e social, era demasiadamente eurocêntrica sem ter noção disto, transparecendo alguma arrogância e presunção em suas falas.
- Então, Ângela, né…?
- Sim.
- Então, Ângela, nós ficamos superpreocupados aqui com a sua queda de rendimento nestes últimos dois meses. Tem alguma coisa que está acontecendo que você gostaria de compartilhar conosco?
- Eu queria falar justamente sobre isso. Eu tenho estado muito cansada, acho que o turno invertido do dia tem me feito muito mal. Eu queria justamente falar sobre uma possibilidade de uma transferência.
- Então, Ângela. É supercomplicado isto mesmo. Eu mesmo trabalho também aqui de Portugal em outro fuso. Também tenho os meus problemas com isso. Eu nem gostaria de falar sobre isso, mas eu tenho tentado achar um horário para fazer minha pós e não tenho conseguido por conta das demandas e viagens do trabalho.
- Eu entendo, mas…
- São ossos do ofício. Somos adultos, nós precisamos ter maturidade de aceitar aquilo que acordamos anteriormente e fazer as coisas bem e sem reclamar, sem fazer corpo mole, sem ficar criando desculpas e subterfúgios.
- Eu sei de tudo isso, Marina. Eu realmente tenho tentado, mas tem sido muito difícil.
- O que tem sido tão difícil para você? É uma grande oportunidade trabalhar para uma empresa japonesa tão jovem, principalmente quando se é de um país como o Brasil.
- Marina, eu não tenho aguentado mais trabalhar neste ritmo, principalmente no horário do escritório em Toyota, principalmente estando do outro lado do mundo de Toyota. Eu gosto muito de trabalhar e aprender com vocês, eu preciso da renda, mas eu tenho ficado estafada. Estou extenuada, na verdade. Quando eu entrei, falaram que dependendo do meu rendimento eu poderia ser transferida para o Japão, ou menos para a Europa, onde a diferença de fuso horário é menos excruciante. Mas vocês nunca mais tocaram no assunto.
- Ângela, então. Nós apreciamos muito o seu trabalho por aqui, e realmente a presença de pessoas da América Latina como você foi de uma utilidade incrível para nós dada a heterogeneidade natural. Mas aqui nós pensamos muito no bem estar dos nossos funcionários, e nós achamos que dificilmente você se adaptaria no Japão.
- Heterogeneidade natural? Adaptar? Marina, você sabe que eu moro em São Paulo, não sabe? Eu literalmente moro na maior cidade entre todos que trabalham em toda a agência, sejam japoneses e não… Marina, por favor, eu tenho realmente ficado muito mal com este horário de trabalho, com essa forma de trabalhar remotamente. Eu amo o Japão, eu sou uma pessoa que simplesmente nasci no país errado. Desde criança eu vocaciono minha vida para este país. Mais até do que minha família sempre quis. Eu adoro trabalhar com vocês, tenho economizado cada centavo que posso para poder me mudar o quanto antes, vocês podem me ajudar. Eu nunca fui muito de pedir, e espero de verdade que isso demonstre como eu realmente tenho chego no meu limite e não vou aguentar por muito mais tempo. Eu amo meu trabalho, eu amo o meu verdadeiro país, mas ironicamente, apesar do Japão ser a terra do Sol Nascente, eu só consigo contemplar o Poente, estou cansada demais de viver assim. É horrível viver durante as noites.
- Ângela, vou precisar ser sincera com você. Não compensa para a agência que você trabalhe lá. Principalmente se a agência que tiver que tocar esse processo. Você não prefere fazer você mesma esse processo e depois, se você conseguir é claro, tentar aplicar no Japão para trabalhar conosco?
- Gostar eu até gostaria, mas é inviável. Por ser sabidamente sansei eu até tenho algumas prerrogativas que facilitam, mas mesmo assim… O processo é custoso, arriscado. Meus pais não criam muitos óbices em relação a minha mudança, mas também não são incentivadores. Nunca falaram muito sequer das histórias da família, o que diria do nosso Koseki Tohon. Com a empresa auxiliando, tenho mais chance de conseguir um visto com sucesso. Além disso, o Japão é um país muito caro para se viver e que eu não tenho nenhuma rede de apoio lá, não é prudente ir sem ter a garantia de um emprego.
- Lamento, Ângela. O escritório não tem como dispor recursos para sua mudança para o país. Se trabalhar neste horário for tão prejudicial para você e para sua saúde, você tem todo o direito de pedir desligamento quando melhor te convir, mesmo porque nós respeitamos a história que você tem conosco e nossas portas estarão sempre abertas para ti, mas não é possível te transferir, seja para o Japão, seja para lugar nenhum. Em relação ao seu desempenho, podemos contar que em até um mês você consegue estabilizar sua produtividade para os níveis do último trimestre?
Esse diálogo repousava sobre a cabeça de Ângela, principalmente porque mesmo tendo anuído de maneira constrangida, ela se esforçou para melhorar seu desempenho, mesmo que isso tenha significado degradar ainda mais sua saúde. Pouco adiantou: fora desligada duas semanas depois. Mesmo tendo as “portas abertas”, nunca mais teve sequer seus e-mails respondidos, o que ainda foi objeto de celeuma na sua declaração de Imposto de Renda no ano seguinte. Voltar para lá era objetivo fora de cogitação, tanto para a agência quanto para o Japão.
Da mesma forma que a imagem da parede de Itabira maltratava Carlos Drummond de Andrade, a Asazuka da sala da casa dos pais fazia mal para Ângela. Sentia que o amor pelo Japão não fora correspondido, enquanto amargava a dificuldade financeira do desemprego. Ela amava o seu trabalho, mas o seu trabalho não a amou reciprocamente. Não era só um coração partido e um estômago mais vazio que lhe afligiam, mas também a ferida na sua alma, talvez o chifre de traição que equivalia a um adultério romântico. Ela se apaixonara por um Japão em que ela podia se ver empoderada e que lhe trazia boas lembranças de nostalgia, mas que dados os tempos modernos não tem tempo para a mesma visão deificada das relações e das pessoas. Não podia mais se identificar com uma cultura que lhe era genuína pelos traços. A sua própria metáfora fazia protagonismo em pesadelos: por mais que o estigma fosse que o Japão fosse terra do Sol Nascente, para ela se tratava da Terra do Sol Poente. Sol Poente que via todos as madrugadas no fim do seu expediente e que lembrava o dissabor do crepúsculo, a morte da felicidade e o cessamento da esperança.
[conto perdedor do 38º Concurso Literário Yoshio Takemoto]
[nota do autor: neste concurso, assim como em vários outros, eu participo com intenções egóicas: eu faço para praticar a minha escrita, principalmente para questões profissionais, e tento ganhar algum dinheiro, motivos que me levam a pensar que sou um fracasso, porque sempre acho que escrevo mal e realmente nunca ganhei um centavo participando destes concursos. Mas neste, em especial, algo aconteceu. O tema não me saltou os olhos e assim que terminei o primeiro tratamento do texto, este texto eu não sei se cheguei a fazer um segundo tratamento ou se enviei após escrever e apenas revisar para caçar erros, eu realizei que não ganharia o prêmio, algo que não me fez ficar melhor quando o resultado foi divulgado e eu perdi. O tema do texto era "sol nascente", óbvia referência ao Japão, o que sugeria um concurso com textos elogiosos ao país. Particularmente, eu acho desagradável sugerir este tipo de tema, e quase que instintivamente eu escrevi um texto que aborda uma ferida do Japão, é o único país de passado imperialista que não consegue ser um país importador de mão de obra qualificada. Esta é uma questão extremamente sensível para o país Japão, que em muito conserva uma certa xenofobia, e eu achei que fosse apropriado escrever um texto que ironizasse um pouco com a proposta inicial do concurso e suscitasse essa discussão, inclusive, ironicamente, Sol Nascente é uma apropriação ocidental para uma nomenclaturação chinesa sobre o Japão, portanto, não há nada nesta expressão que possa bem representar o país, o povo e a cultura nipônica. Hipocritamente eu cito Darcy Ribeiro, autor que também problematizo em outros momentos: "perdi, mas detestaria ter tido o papel de quem ganhou"].