FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 20

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NAQUELA MANHÃ ARTHUR ESTAVA MUITO CHATEADO, pois em razão de uma reunião importante que exigira sua presença, não pudera acompanhar Lívia na alta de D. Esmeralda no hospital. 

Além disso, Sr. Lopes tinha aparecido sem avisar e cancelado o projeto. Não que isso o preocupasse. Estava muito aliviado. Finalmente a casa onde Lívia morava com a mãe, estava livre da demolição. O que perturbara Arthur fora as atitudes estranhas do velho prepotente.

—O que será que aconteceu para o Sr. Lopes cancelar o projeto?— Arthur se dirigiu a Mário seu assistente que colocava em uma pasta, alguns papeis que ele ia lhe entregando. — Em um momento ele aparece exigindo pressa, em outro aparece cancelando tudo e falando coisas estranhas tipo: o passado volta para cobrar os erros.

—Bem estranho mesmo— Mário concordou. —Mas me diga Arthur, você ficou chateado com isso? Pensei que esse projeto te incomodasse.

—E como. Por causa da demolição da casa da Rua Tonelero. Quanto a isto estou aliviado. Mas confesso que estou intrigado com as coisas que ele falou.

—Aquela casa com certeza guarda um passado muito triste para deixar ele assim— Mário concluiu.

—Também tive essa impressão. Sabe de uma coisa Mário? Fiquei com pena dele viu? Mais de oitenta anos atormentado por fantasmas do passado.

—Isso é sério. Será que é algum tipo de demência? —Mário questionou.

— Sei lá viu. —De qualquer forma isso pouco importava para Arthur agora que D. Esmeralda e Lívia estavam livres de serem despejadas de onde moravam e a casa ser demolida.

 

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À hora costumeira ( quinze horas) Arthur se levantou, pegou o casaco e saiu para sua caminhada que, nos últimos tempos, era apenas um pretexto para se encontrar com Lívia, seja na rua a caminho da padaria ou em sua casa, quando passavam a tarde juntos.

Naquele dia, Arthur apressou o passo quando viu que um senhor vestido formalmente subia as escadas da casa de Lívia antes dele.

Quando chegou ao portãozinho e o abriu, encontrou o senhor que já retornava e então subiu as escadas apressado. Encontrou Lívia com o olhar distante segurando um envelope nas mãos. Parecia indecisa em abri-lo.

—Aconteceu alguma coisa? —Arthur perguntou com o olhar no envelope nas mãos de Lívia.

Lívia estava tão absorta em sua descoberta que não notou Artur subir as escadas e assustou-se quando o viu

—Arthur... Não o vi chegar. — E pegou em suas mãos levando para dentro de casa—Tem acontecido tanta coisa... — falou. O envelope queimava em suas mãos. Estendeu-o para Arthur.

— Abra-o para mim, por favor... — pediu. Ela temia o conteúdo ali dentro, agora que sabia que a Imobiliária pertencia ao seu avô. Arthur tomou o envelope de suas mãos abrindo-o devagar e correu os olhos nas poucas linhas. Lívia estava tensa.

—O que tem ai? — perguntou. A voz denunciando toda a sua ansiedade e medo.

— Na verdade... São boas notícias. — Arthur anunciou com um sorriso suave e Lívia tomou o envelope das mãos dele e leu ela própria. A Imobiliária dizia que havia cometido um engano com o pedido de desocupação do imóvel e pedia desculpas pelo transtorno.

Ela baixou as mãos como se estivessem cansadas e olhou de um jeito estranho para Arthur que não conseguiu compreender aquela atitude, afinal ela e sua mãe não precisavam mais sair daquela casa.

—Lívia, o que foi? Está se sentindo bem?— Arthur se aproximou preocupado.

—Agora compreendo tudo... — Lívia falou de novo como que para si mesma ignorando a preocupação de Arthur.

—O que você compreende? Lívia estou ficando preocupado.

Lívia se voltou para ele e segurando sua mão levou-o em direção à cozinha

—Arthur, tem um monte de coisas que preciso lhe contar. Coisas que descobri. Você não vai acreditar. — E foi logo pegando a chaleira com água para o café enquanto ia falando:

— Meu avô é o dono da Imobiliária. O nome dele é Vicente Lopes.  Eu pensava que ele estivesse morto. Meus pais me fizeram acreditar que sim. Mas hoje mamãe me contou toda a história. — Lívia disse de um só fôlego. — Assim que levar o lanche de mamãe vou te contar tudo.

 

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Arthur e Lívia fizeram o lanche da tarde no quarto com D. Esmeralda, para alegria dela, que depois de comer apenas um terço do mingau de aveia com canela e banana, alegou que queria dormir. Ela parecia muito debilitada e sonolenta devido aos tantos medicamentos que precisava tomar. Além disso, tinha se esforçado contando a história da família para Lívia. Antes, porém, de fechar os olhos dirigiu-se a Arthur:

—Cuide da minha menina. Promete?— E sorriu.  Arthur fez a reverência de sempre saindo do quarto com Lívia.

Foram para a saleta e, ali no sofá, aninhada no colo de Arthur, Lívia narrou toda aquela história que a mãe havia lhe contado de manhã. Arthur custava acreditar naquela história absurda, mas concordou que havia uma lógica muito grande em tudo. Inclusive o fato do Sr. Lopes ter cancelado até mesmo a demolição daquela casa.  Tudo finalmente se encaixava. Sr. Lopes não era um velho demente, mas um senhor atormentado pela própria consciência. Agora ficara claro para Arthur a história dos fantasmas do Sr. Lopes.

—Então, o Sr. Lopes é seu avô... Quem diria... —Arthur falou mais para si mesmo. Mas nesse momento Lívia se levantou de seu colo para dizer:

—Você conhece meu avô?

—Sim... —Arthur olhou para Lívia. —Eu conheço... Há poucos dias encomendou-me um projeto. — Ele sabia que tinha chegado a hora da verdade e que não tinha mais como adiar. Ele precisava explicar tudo para Lívia. As coisas pareciam ter sido resolvidas com relação a casa e pelo menos em parte, até a história de Lívia. Mas também ainda tinha outras que precisavam ser ditas principalmente quando se tratava de seu relacionamento com ela. Um relacionamento não pode começar com verdades escondidas.

—Hoje parece ser o dia das verdades... — Arthur parecia que falava para si mesmo e levantou-se chegando até a janela. Lívia teve um pressentimento que a fez se levantar também e ficar ao lado de Arthur olhando a rua e sentindo o vento que estava mais afoito. Lívia já tinha percebido que o vento sempre ficava mais afoito quando algo que mudaria sua vida estava para acontecer. Por isso estremeceu.

—Sim, hoje parece ter sido o dia das verdades. Será que ainda existe mais alguma que eu não saiba?— E buscou o olhar de Arthur, que se sentindo pressionado mais do que já sentia pela própria consciência falou:

—Eu também preciso te contar algo Lívia—havia insegurança em sua voz, mas ele sabia que precisava continuar. A verdade ainda que doesse era preciso ser dita e Lívia já tinha sido enganada demais ao longo de sua vida. Ainda que a perdesse, ele precisava falar a verdade.

—Você parece sério demais Arthur. O que tem para me contar?— Havia cansaço em sua voz, mas ela preferia todas as verdades possíveis. — É sobre meu avô... Suponho...

—Sim... Bem... Tem uma relação com ele também. — Arthur baixou os olhos. Na verdade buscava as palavras certas.

— O que sabe sobre meu avô? O que eu ainda não sei sobre ele? — Lívia perguntou.

— Na verdade... Lívia...  Eu sou o arquiteto e engenheiro contratado por seu avô para demolir essa casa. Ele pretendia criar uma área de lazer aqui. Por isso queria que saíssem da casa — Arthur falou de uma só vez...

—Você sabia de tudo... — Lívia olhou incrédula para ele. — Você sabia que teríamos que sair dessa casa e não disse nada.

— Não... Eu não sabia de tudo... — Arthur tentou se explicar— Não sabia que Sr. Lopes era seu avô e só descobri que essa seria a casa a ser demolida um pouco antes de sua mãe ir para o hospital.  Antes de te falar eu queria tentar reverter a situação... Propus até a comprar a casa. Mas Sr. Lopes não aceitou.

Lívia havia mudado completamente as feições. Havia tristeza e decepção em seus olhos. Havia tanta dor e sofrimento que ela não conseguia suportar.

—Você escondeu tudo de mim... Você mentiu para mim. Sempre soube de tudo.

— Isso não é verdade. Sobre a demolição da casa, eu estava esperando o momento oportuno. Sua mãe estava internada. E como eu poderia saber dessas histórias que me contou? Só agora eu liguei as coisas também. As atitudes do Sr. Lopes com relação a casa... Eu só percebi porque hoje ele cancelou o projeto e ficou falando em fantasmas do passado.—Arthur ia dizendo enquanto seguia Lívia até a porta.

Mas Lívia havia sido tomada por uma espécie de cegueira e surdez e apenas disse abrindo a porta:

— Preciso de um tempo...

— Lívia, por favor, me escute. —Arthur ainda tentou explicar, mas Lívia não queria mais saber de mentiras, de enganos. Já bastavam seus pais a terem enganado a vida toda e agora não ia aceitar mais isso. Arthur era quem ela mais confiava e a quem ela havia revelado toda sua vida e sonhos.

— Preciso de um tempo... —Ela disse. E depois fechou a porta. Mas nem ela mesma sabia que tempo era esse. Se duraria alguns, dias, meses... Se seria eterno.

 

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—O amor de verdade acaba algum dia? — Lívia havia perguntado para si mesma assim que mandou Arthur embora de sua vida. — Acaba? Mesmo depois do café da tarde juntos e de comer bolinho de chuva com canela? —perguntou para si mesma relembrando daquela tarde em que juntos os fritavam: Arthur partindo um bolinho de chuva e colocando em sua boca e depois ela fazendo o mesmo com ele. E depois haviam se beijado ali em frente ao fogão. Um beijo com gosto de canela. O óleo borbulhando na panela assim como o sangue em suas veias.

— Acaba sim. Acaba. Eu quero que acabe porque não quero sofrer. — respondeu para si mesma lutando contra uma lágrima que queria descer de seus olhos. —Acaba. Depois que se perde a confiança. — E saiu rumo ao quarto onde ministrava suas aulas de arte e pintou de forma quase selvagem e desordenada o sol se escondendo. Em volta dele a escuridão ia engolindo qualquer outro vestígio de cor. E quando Lívia percebeu, a sombra real da noite tinha entrado no quarto junto com o vento frio.

—Preciso seguir em frente. — disse em voz alta guardando os pinceis e, ao mesmo tempo pensando no orgulho que sua mãe fazia tanta questão que ela evitasse, mas que em certos momentos parece providencial para não sofrer tanto.

—Talvez tenha sido isso que meu avô tenha evitado. Não sofrer... —Lívia o compreendia, embora não aceitasse todos os seus motivos. E saindo do quarto foi ver mãe. Ela se descuidara pintando o sol e suas próprias amarguras. Pelo menos as horas tinham passado. Só restava saber se a noite conseguiria dormir.

 

 

CONTINUA...

 


 

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