FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 19

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O ENFERMEIRO COLOCOU D. ESMERALDA NA CAMA para que descansasse, a contragosto dela que queria ficar na sala.

—Estou cansada de descansar— D. Esmeralda argumentou depois que o enfermeiro se foi.

—Eu sei mamãe, mas são ordens médicas.  Está muito fraca e, pelo menos hoje vai ficar aqui descansando no quarto. — Lívia falou com carinho, mas de forma imperativa. —Vou preparar algo para a gente almoçar e foi se afastando.

—Minha filha quero lhe contar algo... — A mãe a deteve segurando-lhe as mãos.

Lívia parou e fitou a mãe temendo que fosse falar sobre o tal envelope da Imobiliária.

—Mamãe, conversaremos depois... — E tentou ajeitar de novo a mãe nos travesseiros. — Agora precisa mesmo descansar.

—Depois pode ser tarde demais— D. Esmeralda fitava um ponto qualquer do teto e Lívia temeu que a mãe estivesse pressentindo algo, pois se até mesmo ela pressentia. Então se sentou na beirada da cama e tomou as mãos da mãe.

—Mamãe não fale assim, por favor. Não tem essa de ser tarde demais... —Mas no íntimo Lívia temia, pois, sua mãe estava cada vez mais debilitada e agora tinha desenvolvido uma arritmia cardíaca.  Contudo, ela sabia que devia deixar a mãe falar. Tem coisas que precisam ser ditas para aliviar. Mas também falar poderia levar sua mãe a se cansar já que o coração estava fraco. Lívia não sabia como agir e também não queria contrariar a mãe.

— Filha eu preciso falar. Tem coisas que são como um fardo aqui dentro. Não posso levar isso comigo quando partir.

—Não fale assim mamãe...  Você vai viver muito ainda— Lívia sentiu um nó na garganta.

— Você sabe que não vou viver muito. Para que se enganar Lívia. Portanto deixe-me falar.

—Está certo então mamãe. Mas se cansar promete parar?

D. Esmeralda assentiu com a cabeça e com a voz fraca pediu à filha:

 —Vá até a cômoda. Dentro daquela caixa onde guardo minhas bijuterias tem uma chave. Pegue-a.

Lívia vasculhou a caixa e, em meio a poucos brincos e anéis estava uma pequena chave de metal em tom ouro velho e torneada em estilo colonial. Pegou-a e se virou para a mãe aguardando instruções.

— Abra a última gaveta da cômoda e pegue uma pequena caixa de madeira que está bem lá no fundo. Traga-a aqui.

Lívia obedeceu e abriu a última das quatro gavetas da cômoda em estilo colonial. Era um móvel bem antigo que Miguel, seu pai, ganhara, caindo aos pedaços de um amigo e ele mesmo restaurara. Ansiosa Lívia afastou uma toalha branca bordada em Richelieu que estava cuidadosamente dobrada e cobria toda a extensão da gaveta. As mãos de Lívia ficaram trêmulas. Era como se aquela toalha estivesse protegendo um passado, um pedaço de sua história. Era aquela gaveta que estava sempre trancada e ela tentara muitas vezes abrir à procura de fotografias de seus avós paternos. Estava certa, lá estava a página rasgada de sua história.  Puxou a caixa com cuidado. Era uma pequena caixa de madeira que parecia um baú feito de forma artesanal, com desenhos florais indianos em alto relevo na parte superior da tampa. O pequeno baú tinha um trinco em forma de ferradura que se encaixava na parte inferior. D. Esmeralda fez um gesto a Lívia para que a abrisse. Ela abriu o pequeno baú com a chave e depois girou a ferradura.

— Continue... — D. Esmeralda incentivou sua filha a prosseguir e Lívia, trêmula, começou a remexer os guardados dentro da caixa.

A primeira coisa que encontrou foi uma caixa de veludo de cor azul marinho que também abriu a pedido da mãe. Lá dentro aninhado em pequenas franjas de seda bege, encontrou um belíssimo e fino colar de ouro rosa com elos redondos. Lívia com cuidado o segurou entre seus dedos e olhou para a mãe de forma interrogativa.

—Era de sua avó Leonor. — D. Esmeralda explicou admirando a joia nas mãos de Lívia. —Segundo seu pai foi passando de geração em geração pelas mulheres da família de um tio de seu avô. Esse colar deveria ter ficado com Mariana irmã de seu pai, mas ela faleceu no parto do primeiro filho. Então, sua avó o entregou a Miguel para que desse à mulher com quem se cassasse. — D. Esmeralda parou um instante. A voz cansada, para preocupação de Lívia, que tentou fechar o pequeno baú, mas sua mãe a deteve.

—Não se preocupe estou bem. —E continuou. —No dia em que seu pai e eu nos casamos, ele me entregou o colar como presente de casamento—falou com o olhar inexpressivo marcado por olheiras e lembranças. E virando-se para Lívia disse: - Hoje eu entrego esse colar a você conforme rege a tradição da família de seu pai.

—Mas mamãe, ele lhe pertence. Que sentido me faz ficar com ele? — Lívia retrucou.

—Nada de “mas”... Pela lógica você é a próxima na linha ancestral percebe? Deve seguir a tradição e não discuta. — disse sorrindo. — Segundo seu pai, esse colar é da segunda metade do século XIX. É de origem americana e feito à mão. Ele me disse que esse tipo de ouro é formado por uma liga de 75% de ouro, 1/3 de prata e 2/3 de cobre. A mistura de prata e cobre é o que dá o tom rosado. No entanto, o ouro rosé possui a mesma pureza do amarelo e do branco — explicou.

— Então os ancestrais de meu avô eram ricos? — Lívia estava curiosa para saber detalhes, pois seus pais nunca lhes falava de seus avós paternos por mais que insistisse. Diziam apenas que estavam mortos e mudavam de assunto. Essa era a primeira vez que a mãe falava tão abertamente de sua avó.

— Na verdade eu não sei muito sobre eles. O que sei é que seu avô herdou esse colar de um tio e padrinho rico e solteirão. O colar seria dado à mulher com quem se casasse, mas ele não se casou. Seu avô então deu à sua esposa Leonor, a pedido do padrinho quando se casaram. Seu pai nunca soube explicar direito essa história. Ele apenas recebeu o colar da mãe que já estava muito debilitada com depressão e lhe contou vagamente essa história. Pouco tempo depois ela morreu, vítima de um AVC.

Lívia estava ainda envolvida em observar o colar e imaginar a história de sua avó, quando sua mãe a tirou do devaneio e pediu para pegar mais coisas no pequeno baú que, pelo visto, possuía mais histórias dentro do que Lívia podia imaginar.

O próximo achado foi um pequeno estojo de couro legítimo marrom que Lívia, ao abri-lo, levou a mão à boca. No interior do pequeno estojo havia uma espécie de almofada de veludo de cor vinho que trazia encaixado na sua circunferência um belíssimo relógio Rolex da marca Oyster Perpetual Datejust em ouro amarelo 18 quilates e aço inoxidável. Diante daquela visão, Lívia olhou questionadora para a mãe.

—Esse relógio era de seu pai—explicou diante do olhar incrédulo de Lívia, pois ela sabia que o pai não tinha posses para possuir um relógio daqueles.

—Ele ganhou do pai quando completou dezoito anos. Esse relógio tinha sido lançado na época.  — D. Esmeralda explicou.

— Não entendo mamãe... —Lívia sabia bem o quanto seu pai era um lutador para sobreviver e, de repente sua mãe vem com aquela história insinuando que a família dele era abastada.

— Você vai entender minha filha... Mas antes pegue uma fotografia que está no fundo da caixa. — pediu e Lívia tirou de lá uma fotografia em preto e branco com sinais visíveis do tempo no papel. Na fotografia tinha um jovem casal que, para espanto de Lívia, parecia seu pai e ela mesma ali de braços dados.   Lívia levantou os olhos da fotografia e buscou o olhar da mãe procurando mais explicações.

— Eram seus avós paternos—explicou. — Você se parece muito com sua avó Leonor. Aliás, seu pai já havia dito isso a você. Eu me lembro. São idênticas como pode notar. E seu pai se parecia muito com seu avô Sr. Vicente Lopes. – A voz de D. Esmeralda parecia trêmula.

Lívia estava sem palavras diante daquelas histórias que faziam parte de sua vida.

—Porque a senhora e papai nunca me mostraram essa foto mamãe?— Lívia questionou. —Sempre quis saber como eram meus avós. Porque esconderam tudo de mim? —Havia amargura na sua voz.

—Por orgulho... — D. Esmeralda respondeu com a voz fraca e triste.

—Por orgulho? — Lívia entendia cada vez menos, mas desconfiava que algo muito sério tinha acontecido com a família de seu pai e se lembrou que, quando perguntava sobre os avôs , seus pais desconversavam. —Não entendo mamãe.

— Sim... Eu sei que você não entende e é por isso que vou lhe contar uma longa história.

—Mas mamãe, a senhora não pode se esforçar. — Lívia tocou o rosto abatido da mãe—Podemos conversar outro dia. Posso esperar.

—Mas eu não posso esperar. E não se preocupe. Vou ficar bem. Acredite. —sorriu para a filha e se recostou na cabeceira da cama. Lívia ajeitou os travesseiros às suas costas para que ficasse mais confortável.

D. Esmeralda fechou os olhos por instantes reorganizando as lembranças. Depois com a voz trêmula e cansada, foi tirando do baú de recordações, velhas coisas guardadas.

Ela tentara esquecer aquele passado, mas naquela manhã quando vira seu velho sogro curvado sobre uma bengala diante da casa, quando chegara do hospital, soube que o passado sempre volta e joga na cara da gente os erros que por orgulho cometemos. Ela soube também que tinha chegado a hora de revelar à Lívia aquele pedaço obscuro de sua história. E o fez, derramando as angústias que trazia há anos dentro de si e que transbordaram como um rio depois de uma tempestade. Às vezes em lágrimas e Lívia preocupada tentava parar a mãe, mas ela continuava.

Lívia ouvia em silêncio e qual não foi sua surpresa quando a mãe disse por fim:

—Seu avô Vicente Lopes está vivo. Ele não morreu como te fizemos acreditar—E buscou o olhar de Lívia. Ela esperava encontrar neles compreensão, perdão... Não sabia ao certo. Mas só naquele dia tinha finalmente entendido que não tinha o direito de ter escondido tanta coisa da filha.

—Mas por que... Por que me fizeram acreditar que meu avô estava morto?

—Por medo de você o procurar e seu avô te magoar. Você não merecia sofrer como nós. Imagine o que ele não faria com você se foi capaz de deserdar o próprio filho por ter se casado comigo, uma mulher pobre. Na verdade, o orgulho falou mais alto. Essa é a mais pura verdade filha. Fomos tão orgulhosos quanto seu avô.

—Talvez tivesse acontecido o contrário, mamãe. Talvez, quando me conhecesse , meu avô tivesse feito as pazes com vocês.

—Acredita mesmo nisso filha? Pois vou lhe dizer: Seu avô é o dono da Imobiliária que nos aluga essa casa.

Lívia levou as mãos à boca. Ela não queria acreditar em tudo que estava ouvindo.

—Eu sempre soube que ele era o dono dessa casa.  Mas ele não sabia de nós. Mas não pude deixar de alugá-la porque o preço era o que nos convinha — D. Esmeralda confessou timidamente para a filha.

—Acredito que seu avô nos descobriu aqui há poucos dias atrás. Por isso aquele pedido de desocupação da casa. Seu avô nunca gostou de mim. Entende agora porque lhe escondemos toda a verdade? Ele jamais iria te reconhecer.

Foi então que Lívia se lembrou do velho senhor que observava a casa outro dia e quando a vira a chamara de Leonor e saíra apressado. Ele as havia descoberto naquele dia.

—Meu Deus era ele...  — Lívia repetiu para si mesma e depois, virando-se para a mãe que a olhava sem entender, repetiu:

—Era ele... Era ele mamãe. Meu avô...

—Como? Não entendo Minha filha.

—Meu avô esteve aqui outro dia mamãe observando a casa e quando me viu me chamou de Leonor— Lívia se virou para a mãe. —Era ele... Agora sei que sim. Quando o chamei ele saiu apressado segurando uma bengala.

—Ele nos descobriu mamãe porque me pareço com minha avó. Agora está claro.

Foi então que D. Esmeralda confessou:

—Ele veio também essa manhã. Eu o vi quando chegamos do hospital— falou com os olhos baixos. — Eu o reconheci depois desses anos todos e sei que ele também me reconheceu.

— Mas então... — Lívia não estava entendendo. —Imagino quantas vezes não deve ter vindo aqui nos observar. Como será que nos encontrou?

— Eu não sei minha filha. O que sei é que o passado sempre nos encontra. Principalmente quando ficaram coisas mal resolvidas para trás... — A voz de D. Esmeralda era um sussurro.

 

 

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Então Lívia acomodou a mãe cansada nos travesseiros. Ela também estava cansada no corpo e na alma. Por isso se deitou ao lado da mãe e dormiu acordando bem mais tarde com uma batida seca na porta de frente.

Quando a abriu deparou com o mesmo senhor de traje formal da Imobiliária Lopes que, assim como da outra vez, lhe estendeu um envelope. O coração de Lívia saltou no peito.

— O Senhor de novo?— perguntou desconfiada estendendo a mão para receber o envelope.

—Preciso que assine aqui nesse recibo— O senhor lhe estendeu um papel e uma caneta que Lívia segurou com as mãos trêmulas e assinou devolvendo-o.

O senhor se virou para descer a escada e Lívia ficou ali criando coragem para abrir o envelope. Ela não deixava de pensar o que seu avô estaria tramando com ela e sua mãe agora.

 

 

CONTINUA...

 


 

 

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                                 https://www.youtube.com/watch?v=skqkG86CTPM

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