FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

Capítulo 18

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QUANDO SR. LOPES DEIXOU ARTHUR NA SALA, FOI direto para seu quarto e se sentou em uma poltrona de couro na sacada com proteção de vidro.

O entardecer formava cintilâncias no horizonte, com suas linhas alaranjadas, às vezes avermelhadas, que misturadas ao cinza, terminavam em nuances, ora prateadas, ora douradas, detrás dos prédios já pontilhados de luzes.

A gente nunca sabe o que vai acontecer com nossa alma depois da melancolia do entardecer. Geralmente acordam-se saudades e lembranças, vazios e solidão, ressentimentos e consciências...

— A locatária está entre a vida e a morte... — Sr. Lopes se lembrou das palavras de Arthur. Fechou os olhos permitindo que as imagens de seu passado chegassem. Não lutou contra elas.

Antes de morar ali naquela mansão, Sr. Lopes e a família vivia no palacete em estilo árabe do Bairro Ipiranga.  Depois os foi perdendo um a um. Leonor e Mariana levadas pela morte e Miguel pelo orgulho. Quanto à morte, Sr. Lopes sabia que nada a podia deter. A beleza e doçura de Leonor e Mariana foram nada diante dela.

Num impulso, Sr. Lopes se levantou e foi até a escrivaninha em seu quarto e abriu uma gaveta que há mais de vinte anos não abria. Os melhores sonetos do poeta William Shakespeare ainda estavam lá num canto. Porque os guardara? Nem ele sabia. Mas folheou quase com ânsia as páginas e parou no soneto LXV. E lá estava: “se a morte predomina na bravura do bronze, pedra, terra e imenso mar, pode sobreviver a formosura, tendo da flor a força a devastar?” E era tudo o que definia a partida da sua esposa e filha, porque ele mesmo naquele instante não encontrava palavras. Suspirando atirou o livro de volta na gaveta e remexendo mais para o fundo trouxe de lá um porta-retratos desses antigos feitos em madeira, vidro e adornos prateados nos cantos. A foto em preto e branco mostrava Leonor sentada numa cadeira, ele em pé às suas costas e ao lado Miguel e Mariana pequenos.

Com uma ânsia incontida, Sr. Lopes vasculhou as gavetas à procura de fotografias mais recentes. Encontrou Mariana no dia de seu casamento belíssima qual uma princesa e Miguel no dia de sua formatura, e descendo a escada do palacete, vestida em seda azul, ele encontrou Leonor com seu olhar triste. Ela não tivera sempre aquele olhar. Quando moravam na Rua Tonelero eles eram sorridentes como os daquela moça, sua neta, que vira outro dia. A neta que ele não sabia que existia.

Sr. Lopes recordou-se que quando decidira deixar de vez o palacete, nada levou consigo que lhe pudesse despertar memórias. Contudo, num impulso colocou aquelas fotografias numa caixa. Depois as guardou na gaveta da escrivaninha e nunca mais as viu senão naquela tarde quando a melancolia do entardecer desenterrou os ossos de seu passado.

— Nada detém os fantasmas do passado. Mas e quanto ao orgulho, quem o poderá deter?— Sr. Lopes disse em voz alta reconhecendo seu próprio orgulho e desejou que a morte o tivesse levado no lugar da filha e da esposa.

— Teria evitado tanta coisa... — Sr. Lopes disse também em voz alta relembrando que algumas semanas antes de cortar relações com o filho, Miguel havia aparecido em casa levando Esmeralda, sua namorada, para que a conhecesse.

Miguel e Esmeralda, jovens e sonhadores subiram as escadas de frente do palacete de mãos dadas. Ela com um vestido floral simples de algodão e sandálias rasteiras nos pés. Não tinha como negar, Esmeralda era uma linda moça e tinha um ar nobre, apesar da simplicidade dos trajes. Só um detalhe a desabonava aos olhos do Sr. Lopes: era pobre.

— Em que você trabalha menina? —Sr. Lopes havia perguntado de propósito, enquanto observava o temor com que ela segurava a xícara de porcelana branca com florzinhas azuis e cor-de-rosa e detalhes dourados nas bordas e asas. Era possível perceber que suas mãos estavam um pouco trêmulas.

Esmeralda olhou para Miguel que consentiu algo com a cabeça.

—Eu sou costureira. —Esmeralda respondera de cabeça erguida, apesar do olhar prepotente  do Sr. Lopes que não deixava de intimidá-la.

—Pelo menos tivesse respondido modista... —Sr. Lopes pensou ao mesmo tempo em que tossia levando a mão à boca. —Teria soado mais aceitável.

—Você tem uma confecção então... — Ele prosseguia com as perguntas intencionais.

—Não. Não tenho. Costuro por encomendas em casa mesmo. —respondeu sentindo orgulho do que fazia, pois costurava bem e era reconhecida até por madames ricas.

—Ah!... Então você é uma costureira de fundo de quintal... —Ele concluiu com um ar cínico e Lívia não pode evitar que suas mãos tremessem derramando café em sua roupa.

—Basta Papai. Já chega de interrogatórios— Arthur correra para ajudar Esmeralda com o café quente que havia manchado seu vestido.

Miguel e Esmeralda tinham se conhecido por acaso, em uma praça da Vila Romana. Ele tinha ido vistoriar algum imóvel naquele bairro e Esmeralda voltava de uma compra de aviamentos. Esbarraram-se e as compras de Leonor se espalharam pelo chão.

O romance começou em poucos dias. Desses romances inaceitáveis por alguns da alta sociedade como foi o caso do Sr. Lopes. A princípio ele pensava que fosse apenas um namorico passageiro, mas, quando surgiu a ideia do casamento, Sr. Lopes viu que o filho fora longe demais e ele não ia aceitar essa afronta ao seu status na sociedade.

Sr. Lopes procurou Esmeralda em sua humilde casa. Ela saiu para atender a porta segurando nas mãos uma peça de roupa que estava costurando. Dera um passo atrás ao abrir a porta e ver diante de si o pai de Arthur.

—Sr. Lopes... — dissera apenas. O constrangimento tomando conta de si.

—Vim para resolver essa questão de seu namoro com Miguel de uma vez por todas. — dissera ele de forma bem direta e estendendo-lhe uma folha de cheque. —Imagino que seja o suficiente para quem está acostumado à pobreza...— E seu olhar varreu com desdém a modesta sala da casa de Esmeralda, que não tinha senão um jogo de sofá velho coberto com uma manta de crochê de cor palha e uma estante cheia de porta-retratos e poucos livros.

O tom de voz do Sr. Lopes exalava todo o desprezo que sentia. Não necessariamente por Esmeralda que ele até admirava, pois era uma moça muito educada e trazia nos gestos alguma nobreza. No entanto, era pobre, e isso ele não admitia para seu filho.  Ele já fora pobre e acreditava que a pobreza tira a dignidade de uma pessoa. Mas ele estava errado, porque a dignidade não é a qualidade do que é elevado em posses. É, acima de tudo, uma qualidade moral que infunde, sobretudo, a consciência do próprio valor.

 Quando Sr. Lopes estendera o cheque, Esmeralda, recuara um passo e o olhara bem nos olhos. Não dissera nada. Um silêncio que por breves instantes desconcertara Sr. Lopes, porque tinha a força de um não misturado ao desprezo. O desprezo era mútuo. Ele pela pobreza de Esmeralda. Ela pelo orgulho que emanava do sogro. Então ela simplesmente empurrou a porta diante dele, fechando-a na sua cara e se afastou para seus afazeres.  Tem coisas que não tem como serem ditas por que podem tomar proporções maiores e fugirem ao controle.

Sr. Lopes ficara sem ação e não lhe restara ir embora. Ele não sabia se o que sentia naquele momento, era ainda mais desprezo por Esmeralda, alguma admiração velada por sua tamanha nobreza ou algum sentimento que se aproximava da vergonha por ele mesmo.

Portanto, Sr. Lopes não conseguira separar seu filho da namorada e, naquela manhã de maio Miguel saiu para sempre de casa para se casar com Esmeralda. Depois disso, Sr. Lopes se mudou para a nova mansão, abandonando o palacete e seu passado. E para manter a condição de um passado morto, estava decidido a destruir a casa da Rua Tonelero, onde vivera os tempos menos abastados de sua vida e, onde morava agora, a esposa de seu filho e sua neta. Coisas do destino?

 

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—Esmeralda tinha uma nobreza que me espantava. Como não levei isso em conta?— Sr. Lopes havia dito para si mesmo ali reclinado na poltrona, segurando as fotografias e sentindo no rosto o vento frio da noite, do inverno e das lembranças.

Naquela noite quando foi para a cama já era madrugada e quando dormiu, sonhou com Leonor, sua esposa quando jovem, descendo as escadas da antiga casa da Rua Tonelero. De repente outra jovem entra em cena e, então, Sr. Lopes vê as duas lado a lado, idênticas, rindo e descendo juntas a escada.  No sonho, Sr. Lopes viu também a imagem de Miguel e Esmeralda segurando uma menina pelas mãos e também descendo as escadas. Todos pararam diante dele em frente ao portãozinho e o olharam nos olhos. Sr. Lopes não soube dizer se o condenavam ou sentiam pena da sua solidão e amargura. Acordou assustado. O suor descendo pelas têmporas e molhando o travesseiro apesar do frio que entrava pela janela que ficara aberta. Em sua alma havia bem mais que solidão e amargura. Havia arrependimento e a consciência dos erros.

 

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Alguns dias depois, quando desceu para tomar café, Sr. Lopes anunciou ao motorista que ia sair e, mais uma vez, seu Land Rover Range parou defronte a antiga casa onde morava Esmeralda e Lívia.

 Ele desceu do carro e ficou afastado alguns metros esperando os fantasmas de seu passado reaparecerem. E reapareceram meia hora depois, travestidos de Lívia e, dessa vez, de Esmeralda.

Agora que Sr. Lopes sabia quem era Lívia, compreendia tamanha semelhança com sua esposa Leonor. Até na forma de se vestir e na nobreza dos movimentos.

Lívia descera de uma ambulância juntamente com uma senhora a qual colocaram numa cadeira de rodas. Essa imagem chocou Sr. Lopes.  D. Esmeralda parecia desaparecer dento de um moletom verde musgo e um casaco creme. O rosto magro contava toda a sua história de lutas. Mas ainda era bela.

— A locatária está entre a vida e a morte... — Sr. Lopes se recordara das palavras de Arthur .

Naquele instante, D. Esmeralda, parecendo adivinhar a presença de alguém a observando, levantou os olhos diretamente para Sr. Lopes parado há poucos metros dali. Fitou-o por um instante para, em seguida abaixá-los, por medo, talvez, de que tal ato fosse percebido pela filha. Sr. Lopes teve a certeza de que ela o reconhecera.

Ele a viu se afastar, empurrada na cadeira por um enfermeiro forte, que depois a tomou nos braços e a levou escada acima como se fosse um bebê. Um sentimento diferente que nunca sentira antes, mas que não soube decifrar tomou conta de si.  Sr. Lopes tinha noção naquele exato instante do abismo terrível que por orgulho ele tinha criado entre sua família. 

 

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Sr. Lopes entrou rapidamente no Land Rover Range e pediu que o motorista o levasse à imobiliária.

—Quero que revogue o pedido de desocupação da casa da Rua Tonelero. —dirigiu-se ao administrador. E diante de seu olhar questionador disse apenas. —Não me faça perguntas. Apenas o que te pedi com urgência.

Depois, como se o tempo fosse curto demais para tantas decisões pediu ao motorista que o levasse à empresa Andrade Empreendimentos & Arquitetura.

Arthur a contragosto o recebeu.

—E agora Sr. Lopes do que se trata? Tenho uma reunião em quinze minutos

—Cancele tudo, meu rapaz... — Havia determinação em sua voz como sempre. —Cancele o projeto... Cancele a demolição da casa... —E simplesmente se virou para sair.

—Mas e o contrato? — Arthur estava boquiaberto diante do comportamento do Sr. Lopes. — Está simplesmente quebrando o contrato?

—O que é um contrato diante da vida de uma pessoa... — Sr. Lopes  disse já alcançando a porta de vidro.

Arthur levantando-se foi atrás dele.

—O que aconteceu para mudar os planos Sr. Lopes? Isso tem a ver com nossa conversa de alguns dias atrás?

— Se eu disser que sim dirá que sou um fraco. — Sr. Lopes parou e se virou para Arthur.

— Não, não... Eu diria que se importa com a dor dos outros. Que é capaz de ter sentimentos. —Arthur respondeu aliviado porque finalmente as coisas iam ficar mais fáceis para Lívia.

— Se pensa que sou fraco, não importa mais agora meu rapaz. Já dei ordens para revogarem o despejo daquela senhora. Satisfeito?— E ficou olhando um ponto qualquer daquele imenso escritório enquanto amparava na bengala de caminhada o peso dos anos e, certamente, o peso da consciência. Depois disse: —Chega um tempo, meu rapaz, que a gente descobre que é impossível destruir o passado.  Ele tem o dom de nos perseguir. E pior: de nos jogar na cara os erros que por orgulho cometemos.

Depois olhou bem nos olhos de Arthur e completou: —Demolir uma casa não vai resolver o problema dos fantasmas porque eles não estão lá dentro, mas aqui... — E apontou com a bengala o próprio peito. Depois se virando novamente cruzou a porta de vidro sem olhar para trás.

Arthur ficou parado naquele imenso escritório tentando adivinhar que fantasmas eram aqueles que foram capazes de dobrar o velho prepotente.  A conversa que tiveram havia aberto alguma campa antiga, isso ele tinha certeza. Quando se virou todos os seus funcionários estavam em silêncio, parados, olhando para ele.

— Ao trabalho pessoal— E seguiu para sua mesa, aliviado, porque afinal um dos problemas finalmente tinha se resolvido.

—Perdemos um projeto milionário. — Mário que o seguira até a mesa havia dito em um tom brincalhão.

—Quer saber Mário? Estou mais que aliviado. Desde a primeira vez que vi Sr. Lopes eu sabia que nossa parceria não ia dar certo.

— Quer saber também Arthur? Eu também tive essa mesma sensação.

 

 


 

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