FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 17
O TÁXI EM QUE ARTHUR ESTAVA PAROU NUMA RUA DO Morumbi, em frente a uma bela casa de dois pavimentos.
Arthur jurava que encontraria o Sr. Lopes em um velho casarão de traços de inspiração classicista, com pequenos telhados sobre a porta principal e janelas sustentadas por mãos francesas trabalhadas em madeira. Era bem seu tipo. Mas não, via-se de frente a uma bela casa moderna, onde, para espanto de Arthur, o conceito da arquitetura era tipicamente minimalista, a começar pelo extenso jardim de frente. Tudo tinha um visual leve e muita luz natural que entrava pelas sacadas, portas e janelas amplas de vidro.
Alguém veio receber Arthur no portão depois que ele se anunciou pelo interfone. Era um senhor de meia idade vestido formalmente e Arthur ficou pensando se ainda existiam mordomos nos dias atuais. O que não parecia combinar com o modernismo daquela mansão, embora combinasse com o ar feudal do Sr. Lopes.
Enfim, o tal senhor o levou à sala de entrada, que deixou Arthur ainda mais boquiaberto com sua amplitude. As paredes e portas de vidros, as cortinas que se abriam e se fechavam através de controle remoto, os detalhes naturais de madeira marcando o interior ao lado de móveis e obras de arte...
Tal constatação, para Arthur, ia totalmente contra ao desdém que o Sr. Lopes dirigiu ao conceito minimalista em seu escritório dias antes, mesmo tendo lhe encomendado um projeto nesse estilo.
Era uma bela casa. Arthur teve que admitir o bom gosto do velho prepotente.
Enquanto observava um belíssimo quadro do artista plástico norte-americano Frank Stella, em cujas linhas geométricas a presença de abstração lírica era latente, Arthur nem percebeu que o Sr. Lopes se aproximava apoiado em sua bengala de sempre.
—É uma bela obra. — Sr. Lopes falou bem atrás de Arthur — Uma bela e estranha obra, eu diria.
Arthur se virou. Sua raiva foi crescendo ainda mais, porém se conteve.
Sr. Lopes vestia uma calça cinza risca de giz e um suéter também cinza. Um monocromático perfeito que seguia a linha de tensão também cinza que pairou no ar daquela sala assim que Sr. Lopes entrou.
—Não sabia que apreciava a arte e estilo minimalista. Não foi o que demostrou em meu escritório outro dia. — Arthur disse encarando o rosto prepotente do Sr. Lopes, mas que, diante da tela lhe pareceu reflexivo.
—Eh... Nem eu... Mas acho que combina bem com a realidade do mundo. Essas linhas que se cruzam praticamente sem sentido... — Foi a única resposta do Sr. Lopes, enquanto traçava no ar, com a bengala, linhas verticais e horizontais na direção do quadro. Fora a resposta de quem aprecia não exatamente o estilo, mas tenta compreender a verdade abstrata que a vida esconde. Enfim desvia o olhar da tela para dizer:
— Ora, ora... Mas quem temos aqui?— Sr. Lopes foi logo dizendo. O ar reflexivo do olhar sumindo para dar lugar ao ar questionador diante da presença de Arthur em sua casa. —Não teria sido mais oportuno ter me chamado em seu escritório? Ou marcado com minha secretária no meu amanhã?
—Na verdade o que tenho a tratar não pode esperar amanhã e muito menos esses rituais burocráticos. — Arthur falou querendo esganar aquele velho prepotente diante de si.
—Imagino... —Sr. Lopes levantou uma sobrancelha. — Para se deslocar assim até aqui pessoalmente quase ao fim da tarde... E sem avisar... Espero que tenha boas notícias sobre o meu projeto. — disse e sentou-se em um enorme sofá de cor também cinza e com a bengala indicou a Arthur uma poltrona no mesmo tom cinza, porém com desenhos geométricos em tons mais escuros.
Artur ignorou o convite, mantendo-se de pé no meio da sala.
— Na verdade, eu vim por causa disso... — E retirou do bolso do casaco o envelope da Imobiliária, estendendo-o ao Sr. Lopes que o pegou e abriu. Após correr os olhos pelo conteúdo, levantou o olhar e encarou Arthur sem compreender e questionou:
— Porque isso está com você? Não devia estar com a locatária?
— Devia... — respondeu Arthur. —Devia... Mas ela está entre a vida e a morte em um hospital depois de ter lido isso. — cuspiu as palavras na cara do Sr. Lopes que compreendia cada vez menos a atitude de Arthur.
—Pensei que estivesse claro que eu ia demolir aquela casa para o projeto e, pelo que sei meu caro rapaz, você é quem vai criar esse projeto. Portanto não entendo essa sua atitude. — questionou Sr. Lopes.
— Eu nunca fui a favor dessa demolição... — retrucou Arthur.— e quis negociar, mas o Senhor não quis me ouvir.
— Mas negociar o quê rapaz?— Sr. Lopes riu um riso debochado.
—Além disso, aquela casa é um patrimônio histórico arquitetônico. Não é certo destruir tudo assim... — Arthur tentou argumentar.
—Mas o que você tem a ver com isso meu rapaz?— Sr. Lopes rosnou — Até onde sei esse tipo de arquitetura não te interessa e, depois, a casa é minha e faço o que bem entender. Quanto a você tem um trabalho a cumprir e, pelas contas o prazo já está se esgotando. — Sr. Lopes apontou-lhe a bengala.
— Está enganado. Admiro a arquitetura antiga sim, embora tenha seguido estilos mais modernos. —Arthur entendeu o cinismo do Sr. Lopes— Mas isso não vem ao caso. Eu quero comprar a casa. — falou por fim e Sr. Lopes deu uma gargalhada que ecoou pela imensa sala cheia de quadros de linhas geométricas e abstratas. Arthur teve a impressão de que eles balançaram e que se o eco persistisse certamente se espatifariam ao chão.
— Sr. Arthur, o que decidi está decidido. Não vendo a casa por preço algum e ela será demolida. Isso é definitivo.
—Eu não farei o projeto— disse Arthur e o Sr. Lopes o olhou bem nos olhos.
—Mesmo assim ela será demolida— garantiu Sr. Lopes. —Não existe só você de arquiteto nessa cidade. —falou com ar cínico. —Mas lembre-se... Existe um contrato assinado. — E se levantou para retirar, deixando Arthur ali no meio da sala.
No entanto, quando já alcançava o limiar da escada que levava ao segundo andar, o Sr. Lopes parou e se voltou para Artur.
—Então a locatária da casa está entre a vida e a morte... — O tom de voz de Sr. Lopes parecia uma constatação e, talvez, uma mera reflexão. É que, às vezes, os brutos também têm sentimentos.
—D. Esmeralda não tem como se mudar de casa no momento, pois o estado de saúde dela não é bom. — Arthur respondeu com um fio de esperança.
Sr. Lopes ignorou as palavras de Arthur e, já subindo as escadas, chamou o homem parecido com mordomo.
— Nestor... Acompanhe o Sr. Arthur até o portão. —e virando para Arthur —Passe bem Sr. Arthur. Não se esqueça do projeto. Temos um contrato.
Arthur ficou ali no meio da sala olhando Sr. Lopes subir a escada sem olhar para trás. Depois se virou e seguiu para a porta acompanhando Nestor e, apesar da raiva estar latente dentro de si, não pode deixar de esboçar um discreto riso no canto da boca ao se recordar de Nestor, o mordomo de “As Aventuras de Timtim”, uma série de livros em quadrinhos clássicos desenhadas e escritas por Hergé. Assim como o mordomo do Castelo de Moulinsart, o suposto mordomo do Sr. Lopes era calvo e possuía cabelos apenas nas laterais, além de ser discreto e parecer não se afetar com nada, nem com a prepotência de seu patrão. A única diferença é que o Nestor ali diante dele mão usava o colete listrado. Isso já era demais e foi com muito custo que Arthur afastou essas lembranças, que de certa forma, aumentava ainda mais a raiva que sentia do Sr. Lopes.
—Pena que Sr. Lopes não seja bom caráter quanto o Capitão Haddock. — Arthur disse em voz alta e teve certeza que Nestor fizera aquele mesmo movimento de olho de seu Sósia dos quadrinhos quando estava segurando a bandeja igual uma estátua. Será que ele conhecia aquela história?
—Estou ficando maluco. —E apressou os passos para sair logo daquela casa. A sensação de ter perdido a luta era terrível.
— O que vou dizer para Lívia?
Arthur se preocupava com Lívia e sua mãe. O momento não era propício para uma mudança das duas às pressas. A mãe de Lívia não suportaria, pois seu estado de saúde era gravíssimo. Algo precisava ser feito, mas Arthur não sabia o quê.
Além disso, Arthur precisava dizer a verdade sobre a demolição da casa a Lívia e que ele era o arquiteto responsável. Mas como falar sobre isso naquele momento difícil de Lívia? Ela jamais iria entender e, com certeza ele a perderia para sempre.
Quando subiu as escadas da casa onde Lívia morava já era noite e ele pode ver abaixo da porta um fio de luz, o que provava que ela ainda o estava esperando. Ela abriu a porta e, diante do olhar vencido de Arthur, ela soube que ele não conseguira resolver a questão. Ficou em silêncio e Arthur também. Ela não questionou para alívio de Arthur que, pelo menos naquela noite, não estava preparado para falar toda a verdade a Lívia.
Dormiram abraçados no sofá, depois que Arthur preparou um ensopado que comeram com pão na pequena cozinha.
Lá fora o vento de inverno soprava forte e, às vezes sussurrando pelas árvores. Arthur e Lívia, sentiam-se sombrios com a penumbra da saleta. O silêncio vagando pelos cantos. Lívia estremeceu e Arthur puxou uma manta xadrez sobre os dois.
Arthur sabia que, ainda que Lívia o mandasse embora depois de saber a verdade, ele jamais a esqueceria. Sempre haveria a lembrança das caminhadas, das tardes... Ele sonharia sempre batendo à sua porta...
Arthur preocupava-se com o bem estar de Lívia e sua mãe. Sem ele, elas estariam sozinhas. Precisava ajudá-las a encontrar uma nova casa para morar. Mas ele não poderia esconder mais a verdade de Lívia porque essa verdade acabaria se revelando por si e já estava por um fio. Então seria pior. Resolvera que assim que D. Esmeralda saísse do hospital diria toda a verdade. Não importava as consequências.
Passara-se quase uma semana até a alta de D. Esmeralda no hospital. Arthur dormia todas as noites na casa de Lívia e preparava o café da manhã. Ele não queria que ela ficasse sozinha em um momento tão difícil. Ele se ajeitava no velho sofá da saleta e, depois do café, iam juntos ao hospital para a visita e ficarem a par do boletim médico. Só depois ele ia trabalhar. Não falavam nada sobre a questão da desocupação da casa, exceto na manhã seguinte ao encontro de Arthur com Sr. Lopes. Eles estavam na cozinha e Arthur havia preparado panquecas simples. Enquanto colocava uma no prato diante de Lívia, havia lhe dito:
— Não se preocupe que tudo vai se resolver... — dissera ele enquanto observava Lívia com o olhar fixo na fumaça que subia da xícara de café. — Eu prometo...— E Lívia concordava apenas com a cabeça, mesmo notando certa insegurança na voz de Arthur. Ela, na verdade, estava frágil demais para lutar com o que quer que fosse e, talvez por isso, Artur não lhe falara da demolição da casa. Ele tinha esperança de reverter aquela situação difícil.
CONTINUA...
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