FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
Capítulo 15
DUAS BATIDAS SECAS E FORTES NA PORTA ASSUSTARAM Lívia. Não era Arthur, pois ele sempre batia levemente três vezes seguidas. Era uma espécie de código que ele mesmo havia criado involuntariamente e Lívia se acostumara. Além disso, ele sempre vinha mais tarde para o lanche.
Lívia foi atender a porta e se viu frente a frente com um homem vestido de maneira formal.
— D. Esmeralda?— Ele perguntou e foi logo lhe estendendo um envelope, cujo remetente era “Imobiliária Lopes”, o que deixou Lívia apreensiva.
— Sou a filha dela. Ela não está bem e está descansando. Posso receber por ela?
— Tudo bem. Preciso apenas que assine aqui... — O homem estendeu outro papel a Lívia e uma caneta .— É o comprovante de que entreguei o envelope.—justificou.
—Filha tive a impressão de que bateram à porta. — D. Esmeralda perguntou lá do quarto e só então Lívia percebeu que a porta estava entreaberta. Mas quando chegou ao quarto a mãe continuava deitada.
—Na verdade, bateram sim... Mas era alguém que tinha se enganado de casa. — Lívia mentiu na esperança que a mãe acreditasse, o que não era fácil, pois ela era muito observadora.
D. Esmeralda a olhou nos olhos e Lívia desviou o olhar para a janela. — Preciso fechar a janela mamãe. O vento está muito forte e frio hoje.
— Eu tenho certeza que ouvi meu nome... — A mãe de Lívia procurava indícios no olhar de Lívia de que ela estava escondendo alguma coisa.
Lívia estremeceu e sentiu-se mal enganando a mãe, mas não queria partilhar com ela mais dores do que as que ela já tinha. E ela pressentia problemas com aquele envelope que recebera. Precisava primeiro verificar o conteúdo.
—Sim... Claro... Falei seu nome para aquele senhor, explicando quem morava aqui e ele repetiu. Pare de se preocupar mamãe.
—Não estou preocupada. Estou desconfiada. E me pergunto o que você poderia querer esconder de mim?
— O quê? Imagina mamãe... Não estou escondendo nada. Trate de descansar agora. — E beijou a testa da mãe para tranquilizá-la, mas principalmente para remir a si mesma do pecado de enganá-la.
D. Esmeralda não discutiu mais e fechou os olhos e só os abriu quando ouviu a porta do quarto de Lívia se abrir e fechar. Levantou-se então, com dificuldade, pois estava um pouco zonza, e atravessando descalça o piso de madeira corrida da saleta, foi até o quarto da filha, ficando à espreita atrás da porta.
Lívia em seu quarto abre o envelope.
Prezado Sr.(a). Esmeralda
Pela presente, estamos dando ciência de não haver mais interesse em continuar a locação vigente do imóvel que a Sra. ocupa por razões comerciais dessa empresa, razão pela qual comunicamos que ao final do prazo de 30 dias a contar desta, o mesmo deverá ser desocupado de pessoas e coisas e suas chaves devidamente entregues no escritório do (a) administrador (a) para fins de vistoria e posterior encerramento da locação.
Atenciosamente,
Imobiliária Lopes.
Após ler o conteúdo do envelope, Lívia se deixou cair na cama em soluços. Naquele momento, ela sentiu todo o peso do fardo dos dois últimos anos: a morte do pai, a doença da mãe e o medo de perdê-la, a interrupção dos estudos, as responsabilidades sobre si, e agora, o aviso para desocupar a casa em um momento difícil.
—Por que quando tudo já parece tão difícil, as coisas pioram ainda mais?—Lívia falou em voz alta e logo se arrependeu, pois a mãe poderia ouvi-la.
Por um momento se lembrou de uma conversa que tivera numa tarde com a mãe. Uma conversa em que Lívia questionava as tristezas, a dor e os sofrimentos da vida, inclusive os de sua mãe. D. Esmeralda a ouvia em silêncio. Em determinado momento da conversa, ela se levantou e foi até a pequena estante, e encontrando o livro do romance “Helena” de Machado de Assis, abriu-o numa página demarcada e leu para Lívia as seguintes palavras: “—Mas a tristeza é necessária à vida [...]. As dores [...] são um corretivo da alegria, cujo excesso pode engendrar o orgulho." (Assis, Machado, 1876).
— A tristeza, minha filha, a dor... — continuou D. esmeralda fechando o livro— nos coloca no lugar do outro, da dor do outro, nos tornando mais humanos, enquanto que o orgulho cega os nossos olhos com relação ao outro. —E deixando o livro no seu lugar voltou a sentar-se ao lado de Lívia. Depois tomando suas mãos continuou:
—Uma pessoa orgulhosa, minha filha, demonstra muitos sentimentos ruins como vaidade, soberba, arrogância e até mesmo desprezo em relação à outra pessoa.
—Mas mamãe, eu pensava que o orgulho fosse algo bom. — Lívia retrucou. — Algo que tem a ver com nossa autoestima, dignidade, essas coisas. Sei lá...
—De fato tem sim, Lívia. — D. Esmeralda concordou— A dignidade de uma pessoa ou um sentimento positivo em relação a outro indivíduo é uma forma de orgulho bom. No entanto, como você pode perceber, o orgulho é uma espada de dois gumes: um lado inofensivo e outro destrutivo. — falou com convicção dando um tapinha na mão de Lívia.
—Mas agora, com relação à dor e ao sofrimento... — D. Esmeralda voltou ao ponto que angustiava a filha— garanto-lhe que têm funções espirituais, morais e físicas para nós.
— Verdade mamãe?— Lívia estava admirada com a sabedoria e resignação da mãe.
—Sim... — D. Esmeralda continuou. —O sofrimento e a dor, veja bem, quaaando aceitos, — e cutucou com o dedo indicador a cabeça de Lívia —atingem o ego humano, lugar de maus hábitos e vícios como os que lhe falei com relação ao orgulho. Amadurecem o caráter e digamos, purifica nossas ações, nossos sentimentos e pensamentos negativos.
Ainda assim, Lívia tinha muitas dúvidas, pois o que ela não suportava era a dor da própria mãe diante daquela doença que a definhava e por isso perguntou:
— Mas mamãe, onde fica a alegria em nossa vida? Não temos direito de tê-la então?
D. Esmeralda olhou-a compreensiva. Ela entendia as dúvidas da filha, pois ela mesma as havia tido ao longo da vida, quando perdeu o esposo e quando veio a doença do câncer. Agora falava com convicção, pois, era uma experiência que fora adquirindo a cada dia. Ela podia dizer que a dor e o sofrimento a moldara. Quanto à alegria, ela aprendeu também que devia ter o seu limite como lera no romance de Machado de Assis. Por isso disse a filha:
— Sim, minha filha, temos o direito de ter alegria sim. Até porque a energia própria da nossa alma é a alegria. Sem ela, nossa alma definha e ficamos doentes. Há pessoas que morrem de tristeza sabia disso? — D. Esmeralda falou olhando nos olhos da filha— Mas veja bem, a alegria tem sido mal entendida com estado de euforia.
— E não é?— perguntou Lívia. — Não é rir, sentir prazer, essas coisas?
— Sim... Sim... — respondeu a mãe. — Também isso. Mas vai muito além. A alegria de verdade não é algo externo minha filha. É uma espécie de ânimo, de entusiasmo, autoconfiança. — E com um sorriso terno finalizou—É um estado de plenitude interior. Algo que podemos sentir mesmo quando estamos em estado de dor e sofrimento. Compreende? —disse brincando com uma mecha de cabelo de Lívia e levantou-se anunciando que ia descansar um pouco. Porém, antes de alcançar a porta do quarto, parou e disse:
— Contudo, quero que saiba minha filha... Quanto ao orgulho... — parou um instante como se medisse as palavras. — Quero que saiba que eu e seu pai, por orgulho, já tivemos muitas atitudes que não foram corretas. — E entrou no quarto fechando a porta atrás de si, deixando Lívia com suas reflexões.
Agora muitos dias depois dessa conversa, Lívia estava ali sentada na cama com um envelope nas mãos. Um envelope que mudaria mais uma vez a direção de suas vidas. Mas ela não queria se abater. Não queria e não podia por causa de sua mãe. Por isso, enxugou os olhos com a manga do casaco e se levantou guardando o envelope numa gaveta. No momento oportuno falaria com a mãe. Enquanto isso encontraria um tempo para procurar outra casa para morarem.
Quando saiu do quarto, Lívia encontrou sua mãe sentada na poltrona xadrez da saleta folheando um livro. Desta vez ela relia “Ressurreição” também de seu autor predileto Machado de Assis.
— Mamãe, você esta ai... — Foi mais uma confirmação do que um questionamento, porém, desconfiado, afinal sua mãe poderia ter percebido o seu momento de desespero no quarto.
—Cansei-me de ficar deitada—respondeu levantando os olhos da leitura e fingindo não perceber os olhos vermelhos de Lívia.
— Vou à padaria. —Lívia anunciou evitando encarar a mãe com receio de que ela percebesse como estava se sentindo.
— Posso ir tranquila? — perguntou beijando os cabelos da mãe.
—Sim... Vai tranquila filha. —Ela não contara à Lívia que sentia um pouco de taquicardia e estava levemente zonza.
O que Lívia não previra foi que, assim que saíra, a mãe fora ao seu quarto e, abrindo a gaveta do armário, pegara o envelope da imobiliária ficando ciente do problema que afligia a filha.
Ela sabia bem que a Imobiliária era de seu sogro Sr. Lopes. Mas ela e Lívia precisavam de uma casa com aluguel mais em conta e, por isso, deixara o orgulho de lado. Mas, ao mesmo tempo também, esse orgulho a impedira de falar a verdade à filha.
Agora ali com aquele envelope nas mãos, ela pressentiu que o motivo da ordem de desocupação não era exatamente o que constava na carta e que seu sogro as havia descoberto.
— Nada fica escondido para sempre. — falou apertando o envelope contra o peito, cuja vibração parecia aumentar.
—Por qual outra razão ele nos despejaria se a casa é mesmo de aluguel e pagamos em dia? —Doía-lhe mais a rejeição do sogro. Por instantes se sentiu revivendo uma situação de vinte anos atrás.
Lívia havia lhe escondido o problema por receio de deixá-la ainda mais doente, porém, era uma questão que precisava ser resolvida e logo. D. Esmeralda se sentia fraca, mas precisava ser forte.
Contudo, há momentos em que só decidir ser forte não basta, principalmente quando o corpo está fraco e fica impossível também carregar os fardos da alma.
Ali em pé, no meio do quarto de Lívia, com o envelope nas mãos, D. Esmeralda se sentiu vacilar. Estava mais febril e zonza do que de manhã e não havia contado à Lívia. Então, de repente, ela sentiu uma falta de ar, um suor frio, uma sensação de palpitação e uma escuridão tomou conta de si. Quando acordou estava na UTI do hospital.
CONTINUA...
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