A Encomenda - BVIW
Trinta anos de jornalismo e embatucara com o tema que o editor queria para aquela semana, um texto com o mote "Devolva o Neruda que você me tomou". Mas o Chico já não tinha contado essa história melhor do que ninguém? Um fim de caso redondinho, sem defeito algum? Se ao menos o tema fosse "Trocando em miúdos", conseguiria fazer um conto porreta. Mas esse título, assim, já pronto __ não dava! Não saía nada! Acendeu um cigarro. Isso costumava ser um detonador potente de inspiração. Nada. Depois de três taças de vinho, nada. Uma hora observando os passantes na rua movimentada. Nada. Pegou um volume do Marcelino Freire. A leitura do mestre, que escrevia de todas as formas, em primeira e em terceira pessoa, em diálogos e em fluxo de pensamentos, numa rica variedade de abordagem de temas e construção de personagens, também costumava ser eficaz. Nada. Abriu o Instagram, quem sabe achava ali uma história pronta. Nada. Desesperou-se, o prazo de entrega do texto se aproximando. Súbito, lembrou-se de uma briga entre a avó e a mãe na remota infância. Tudo por causa de um remédio que a avó pegara emprestado e devolvera sem a bula. A mãe, irritada, queria saber a dosagem e os efeitos colaterais e a avó não tinha a menor ideia. Era esse o gancho que procurava! Abriu o computador e digitou o título: "Devolva a bula que você me tomou (e nunca leu)". Era ridículo, mas era o que tinha. Vai essa história mesmo!