Cortinas
Duas e meia da manhã.
Alice gostava das coisas assim. Sem muita conversa adjacente.
Ela precisava da dose dela. Eu da minha.
Enquanto ela espalhava as roupas pelo quarto, eu me escorava contra a parede, tentando fazer algum sentido das voltas que a vida vinha dando. Eu pensava demais. E pensava na hora errada.
Ela virou de costas e eu vi o paraíso, bem do lado do inferno.
Era como seu eu tivesse dois olhos cravados em mim. Mas a única pessoa que estava olhando era eu.
Eu abaixei minha cueca e entrei nela de uma vez só. Sem nem pensar duas vezes.
Ela suspirou, como se estivesse sorrindo junto. E eu mordi os lábios, ao sentir o aperto quente do desejo dela.
“Foda-se”, eu pensei. Eu ia tocar o foda-se e enfiar o amanhã embaixo do tapete.
Três da manhã, e eu gemia o nome dela.
Me questionando como eu podia repetir os mesmos erros, de tantas formas diferentes
e ainda assim,
Terminar dentro dela.
1.
Ela não tinha sido a primeira,
mas eu tinha a clara sensação de que ela iria acabar comigo de um jeito ou de outro.
Eu era um grande estúpido naqueles tempos. Talvez um pouco mais até do que nos anos anteriores. Mais cínico, menos ingênuo.
Uma boa receita pra terminar sozinho.
Não que eu tivesse medo de solidão, ou esperasse algo diferente. Mas eu preferia estar com alguém, nem que fosse pra apontar os erros da minha prosa.
Enfim.
Se não tinha sido a primeira, Alice fazia questão de ser a única.
Não a única na minha cama. Mas a única na minha cabeça. Ou pelo menos nas minhas histórias.
Ela nunca tinha falado nada sobre isso, mas dava pra perceber.
Eu sabia que em algum lugar, ela guardava toda e qualquer coisa que eu escrevia que tratasse sobre ela.
Alice tinha mencionado isso, bêbada, no meio de uma discussão por qualquer besteira que tivemos.
Eu não tinha levado a sério no primeiro momento. Mas depois passei a escrever textos cada vez menos claros, pra deixá-la na incerteza se aquilo se tratava dela ou de outra.
Quando percebi que tinha dado certo, parei com a brincadeira.
Minha mãe já dizia que uma brincadeira só é boa quando dois se divertem.
Eu não sentia prazer em arrancar algum tipo de ciúmes dela.
E bem... Da minha parte, eu não fazia questão de saber com quem e com o que Alice gastava o tempo dela quando não estava comigo. Eu só não queria ver, nem ouvir falar, se havia outra pessoa que ocupava algum espaço concorrente ao meu em sua cabeça. Ou até menos que isso.
Se eu tinha algo a reclamar era da baixa frequência afetiva dela. E da tendência que ela tinha de só aparecer depois da sexta ou sétima dose de vodka.
Eu conseguia segurar minha língua e meu coração dentro de mim quando tomava as minhas cervejas além da conta. Mas Alice tinha a tendência de só ser minimamente autêntica quando o álcool já lhe arrancava um pouco do equilíbrio.
Se eu falo isso, não necessariamente quero dizer que lhe faltasse autenticidade no dia a dia. Mas que eu só via o lado dela que realmente queria estar comigo, nas instâncias em que ela bebia ao ponto de tomar más decisões.
Talvez eu fosse uma má escolha. Talvez eu atraísse esse tipo de situação.
Vai saber.
Com certeza Alice não sabia... .
2.
- Eu gosto mais quando você fica calado... E sério... assim.
- Sério como?
- Como se você estivesse pensando.
- Eu estou sempre mastigando algum pensamento.
- Mas nem todos são sérios. Nem todos são silenciosos... Como os que você vinha tendo agora.
- Você sabe sobre o que eu estava pensando?
- Consigo imaginar. Às vezes eu te provoco só pra ver como você vai reagir. O que você vai escrever depois. Eu faço as coisas e vejo as marcas e cicatrizes no meio das palavras... É como se fosse um tipo só nosso de comunicação.
Fiquei calado, encarando Alice. Pensando em como nossa relação tinha chegado a esse ponto.
- Metade das nossas conversas só acontece aqui... na minha cabeça. – Falei, apontando pra minha testa.
- Me pergunto que tipo de mulher eu sou, aí dentro.
- Que tipo de mulher você gostaria de ser?
Alice riu. Esticou o braço e puxou um cigarro de cima da mesa de cabeceira.
Acendeu e largou o isqueiro sobre a cama.
- Tanto faz. – Ela respondeu, soltando fumaça pra cima.
- Você não é uma pessoa de se contentar com “tanto faz”.
- Nesse caso, não me interessa o tipo de mulher que você me imagina, ou que fantasia. Eu só preciso sentir que ainda estou aí dentro. De alguma forma. Bem ou mal...
- Entendi.
- Eu não posso ser a mulher que você quer. – Ela emendou, depois de jogar as cinzas do cigarro na beirada da janela.
- Como você sabe que tipo de mulher eu quero?
- Não é sobre o tipo que você quer exatamente. É sobre o fato de que se eu me colocar nesse lugar, você vai deixar de sentir o que sente por mim.
- Você acha que eu deixaria de te amar por causa disso?
- De amar não...
- De que então?
- Disso... - Alice falou, ficando de joelhos e colocando a minha mão entre as pernas dela.
Eu senti o calor e a umidade que escorria entre os meus dedos.
Alice caiu por cima de mim e me colocou pra dentro como se soubesse exatamente o que estava fazendo.
Que não sabia era eu.
Eu não sabia onde enfiar a minha cabeça. Onde enfiar o meu ego. E a minha vontade de dizer que ela estava errada.
Que eu estava errado,
Que eu estava pouco me fodendo pra o amor,
e pra a paixão, que ela tanto tinha medo de perder.
Se eu ia acordar na cama dela,
se ela ia acordar na minha.
ou se íamos transar num banheiro de um bar,
preguiçosos demais pra fechar a porta.
Ou se ela ia me esperar na escada
completamente nua,
enquanto eu pegava a comida com o entregador.
Eu me via caindo num hospício numa hora dessas...
por causa dos silêncios
e do calor,
sobretudo o calor
das pernas dela.
3.
Recife não aliviou comigo, nos últimos dias.
Impossível dormir, difícil ficar acordado.
Eu podia muito bem encher a cara e esperar pelo melhor.
Mas não me sinto otimista o suficiente pra tentar a sorte com a cerveja dessa vez.
O velho clichê do escritor que não escreve. O amante que não ama nada. Sequer a si mesmo.
O papel em branco é bruto,
violento e seco.
E eu que me resolva com essa vontade de chorar... lamentando a abstração dos meus próprios afetos. Não tenho sequer a capacidade de sentir dó de mim mesmo.
Que banal esse fim,
não dá pra mim, Alice,
Eu ainda sinto o gosto do teu último beijo,
e ao mesmo tempo não pude te dizer
que nunca é suficiente.
que sempre está em falta...
falta algo, e talvez eu mereça ausência,
e eu mereça o vazio
do buraco que cavei na minha cama,
pra enterrar a minha vontade.
pra enterrar essa saudade
essa vontade de morrer
e brotar novamente, dentro de você.
sem razão ou não,
Eu quero que a paixão me deixe,
com as promessas que não fiz,
No céu, Vênus aponta pra mim -
o último monte que eu escalei foi o teu...
Longe, distante
em alguma esquina de carnaval,
te vi mil vezes,
entre as ladeiras,
em outros olhos,
Enfim, talvez você esteja além,
bem pra lá,
de onde minha prosa seca
e esturricada
consegue chegar,
4.
Qual o valor de uma carta?
Além do papel, da tinta e do tempo levado pra escrever e juntar tudo dentro de um envelope.
Eu perdi as contas de quantas eu já joguei pro alto
e espalhei por aí,
pra ver se alguém pudesse entender pelo menos um pouco do que eu tinha pra dizer.
Talvez Alice tivesse percebido tudo. Talvez ela só não se importasse tanto quanto eu.
Meu abismo, escrito,
esculpido, encarnado.
Era ela,
dona das minhas palavras até o fim.
Mesmo que não soubesse o que fazer com elas.
Mesmo que não precisasse de tanto.
Eu ia me retirando de campo,
me pondo em fuga e em movimento.
Deus é o senhor de todas as coisas,
e o tempo é a única coisa que podemos desperdiçar de verdade,
todo o resto se recupera,
tudo se resolve.
Ela vai encontrar uma paixão em algum lugar,
ou alguém vai continuar a contar a nossa história,
de um jeito ou de outro.
fecho os olhos e fim,
enquanto o diabo arrasta as cortinas.