A terra do cinza

É de fato curioso como grandes histórias se iniciam, às vezes com um evento épico e inesquecível, às vezes com um relato cotidiano de algo que pode ser rapidamente esquecido, às vezes as histórias já tinham começado antes e a gente apenas pegou carona depois. Mas, elas precisam se iniciar de algum ponto e é por aqui que nossa história vai começar.

Antes de tudo, devemos falar do nosso personagem principal, o senhor A. Porque toda história tem um protagonista e esse é o nosso.

Bem... talvez ele não seja assim tão protagonista em outras histórias, com outras tramas e enredos, mas aqui ele será por um breve momento.

O senhor A vivia em uma vila miúda bem próxima de um poço e é importante ter um poço perto de si quando se vive em um local tão escasso como Neverland.

Não há noites e nem dias em Neverland, apenas um constante cinza, que era tão cinza acinzentado, que era tão nem branco e nem tão preto, que todos os moradores da cidade eram meio cinzas também. Muito comum em cidades como essa, pois é como diz aquele ditado famoso dos comerciantes: "todo morador do deserto, tem um pouquinho de areia em si".

Isso fazia parte da vida de todos, principalmente do senhor A, que de tão cinza, ele já aparentava estar cansado e sempre de mal humor com tudo. Ele tinha os braços finos como gravetos, braços herdados, seu corpo possuía uma forma meio oval com um núcleo oco no centro de si.

Que curioso é a natureza e suas peripécias. A forma do senhor A podia refletir perfeitamente sua personalidade distinta. Não que ele tivesse um oco na cabeça, pois como muitos viajantes sempre apontam "Que esperto é o senhor A" ou as costureiras da cidade "Senhor A consegue fazer tudo, ele é muito esperto".

O oco era de fato no centro dele, e aqui não estamos falando de um oco provocado por uma fome profunda, até porque Neverland era farta, tinha muita comida, bebida e, também, estava meio farta de tanto cinza. O oco do senhor A era o que poderia deixá-lo tão cinza e tão mesquinho que seu cinza cinzento se destaca dos cinzas comuns. Um oco cinza em si. Um vazio que podia fazer parte dele.

E assim passavam-se os dias. Também se passavam as noites. Mas como tudo era cinza, ninguém via ou ligava. Eram noites de dia, dias de noite, tardes de madrugada. Sol e lua, era tudo o mesmo borrão quase preto no topo do domo.

Digo borrão quase preto, porque eles fingiam ser menos cinza que o restante da cidade, as pessoas se encantavam com o tom distinto daquele sol ou daquela lua e criavam histórias sobre eles, poesias e músicas.

Que besteira, pensou o senhor A, é tudo cinza e pronto. Sempre curto e grosso, o senhor A.

Todos os dias no horário da sombra alta, senhor A caminhava até o poço que ficava bem perto de sua casa. Colocava o balde cinza, inclinava o seu corpo oval com determinação, esticava os braços finos como gravetos, e assim puxava e puxava do fundo. Era o único momento do dia que o engraçado senhor A se empolgava com alguma coisa.

O que poderia ser puxado dali? Um peixe? Água? Um objeto inusitado?

- Mais cinza... - Praguejava o senhor A sempre que o balde voltava.

Sabia o que era o quê pela forma do cinza. A água era um cinza mais embranquecido e líquido, o peixe era um cinza saltitante que aos poucos parava de saltitar, os objetos eram cinza apenas, nem muito branco e nem muito preto, só cinza.

Mas, não naquele dia, pois tudo parecia diferente. O senhor A tinha ido teimoso naquela manhã, ou seria noite? Não lembro bem.

Contudo, o senhor A estava tão teimoso que até os pescadores falavam que ele tinha teimado sobre a existência de fato ou não de Neverland. Que engraçado era o senhor A.

O senhor A colocou o seu baldezinho, que parecia menor que ontem, mais fino e pequeno. Não ligou. Apenas o posicionou bem e lançou e lançou... e lançou.... a corda velha e cinza.

Lançou tanta corda que acreditou que o balde tinha se perdido no fim do mundo. Resolveu encarar o fundo do poço sem fim, que era tão sem fim, que os viajantes contam que a corda do poço passa de um lado ao outro de Neverland, pode até ser vista na terra distante de Pã. A corda passa de lado no Morro dos Vales. A corda passa deitada nos Trópicos. Sempre puxando e sempre sendo puxada, e sempre com o baldezinho do senhor A no fim da corda.

Porém, eu avisei que o senhor A estava teimoso neste dia. Por isso, ele não desistiu e começou a puxar e puxar.... e puxar... Não ligava se não fosse água, poderia vir o peixe ou o objeto que fosse, mas o corajoso senhor A apenas queria puxar algo.

E, talvez essa seja a graça de ter um poço: puxar. Você não tem nada no balde e de repente tem. Você puxa e puxa do oco do poço, que até parecia o oco do topo da barriga do senhor A.

E foi puxando e puxando, que o senhor A sentiu que não dava mais para puxar. “Mais que droga!”, pensou o senhor A, o balde deve ter se prendido.

Era tão terrível quando o balde prendia em algo e era ainda mais terrível porque era o desconhecido que estava prendendo o balde.

O senhor A não poderia saber se era uma pedra, se era um galho, se era uma pessoa.

E... nossa! Como essa última hipótese o apavorava. Tinha que ser qualquer coisa, menos uma pessoa. Ninguém tocava no baldezinho do senhor A, era uma regra, quase uma lei. Certo dia um ladrão estava a passeio e quase levou o balde do senhor A, que loucura. O senhor A ficou tão furioso que bateu nele com um cabo de uma vassoura velha e cinza que tinha. Isso ficou tão famoso pela região, que todo mundo que vê o senhor A sempre diz "Cuidado com a vassoura velha e cinza do senhor A", ou "Por um balde, você pode perder o juízo", diziam outros.

Mas, de tanto puxar e não vir nada, o senhor A pensou em desistir. O pensamento o amedrontava. Nunca tinha desistido de nada na vida, porém não via mais sentido em puxar. A corda estava tão esticada e fina, qualquer um perceberia que estava prestes a se arrebentar mesmo.

E de cabeça baixa, virou-se para ir embora. Deu um passo ou dois, realmente não lembro quantos foram, até que sentiu algo bater atrás de sua cabeça.

-Ai! - exclamou o senhor A, não porque ele era dramático, mas como uma genuína forma de demonstrar desconforto.

Ele olhou de um lado ao outro para brigar com quem tivesse feito aquilo. Porém, o lugar estava vazio, só tinha o poço e o cinza. Bem... tinha outra coisa também, algo meio desinformado, meio brilhoso, meio... não cinza.

- O que é isso? - perguntou em alto e bom som o senhor A.

- É amarelo - gritou o poço.

Senhor A quase cai para trás com aquela voz do fundo de seu poço. Seu poço nunca tinha falado nada, nunca respondeu nada. E agora ele resolve falar "amarelo"? O que era amarelo? Que palavra ridícula. Que poço ridículo.

- Chega de gracinhas! Devolva já o meu balde, seu poço cinza. - Realmente, o senhor A deveria estar com muita raiva para ter falado um insulto tão difícil de se escutar.

Por alguns minutos, o poço ficou em completo silêncio, como se nunca tivesse falado nada a vida toda. Até que um som alto ecoa do fundo, bem do fundo sem fim, e a corda balança no poço.

Oh! Deveria ser um sinal para puxar o baldezinho.

E é o que o senhor A faz. Ele puxa e puxa o baldezinho. Puxa com pressa, com angústia e desespero, queria apenas puxar e se sentir a salvo. Queria apenas ter seu baldezinho vazio e cinza de volta. Mas ao puxar, sentiu o peso, sentiu o vazio, sentiu o cansaço. Colocou mais força em seus braços de graveto, depois mais força no seu corpo meio oval, até que....

O senhor A tinha caído no chão, em um solavanco. Olhou para cima e viu o que nunca acreditaria que fosse possível ver, coisas não cinzas por toda parte, coisas que deveriam estar no balde e agora estão no céu; essas coisinhas foram tão alto que quando a gravidade as puxou novamente para baixo, o senhor A tentou se proteger de tanto não cinza, colocou o balde reencontrado na cabeça e saiu correndo meio desengonçado. Aquelas coisas de cores não cinzas, caíam uma por uma, como gotas de chuva bem grossas, caíam direto no topo da cabeça do senhor A.

-São apenas cores. - O poço ri. Mas, não era engraçado coisa nenhuma. - Veja! Tem amarelo, azul, verde, e agora tem branco e preto também.

Foi aí que o senhor A parou de tentar correr e olhou à sua volta, com aquelas cores espalhadas por todo lugar.

A princípio, o senhor A se sentiu estranho, mas como era curioso resolveu ir averiguar o que eram essas cores estranhas.

Tocou em uma nada cinza, e de repente todo o céu começa a ficar da mesmíssima cor, bem vibrante e destoante do resto cinza de Neverland.

-É o azul. - disse a voz do poço que o senhor A quase esqueceu.

Que curioso. Que instigante. Cor em cor o senhor A vai animado tocando e transformando sua cinza paisagem. Ora era um verde bem forte das copas das árvores, ora um amarelo sutil na asa de uma borboleta meio cinza. Mas havia muito mais, tinha vermelho, roxo, marrom, e tinha cinza também.

E aos poucos e pouquinhos Neverland não era mais cinza, mas multicolorida e interessante. A pacata Neverland que sempre esteve ali, sempre foi cinza, agora era meio arco-íris.

- Como você fez isso? Que mágica oculta é essa? - Perguntou ao poço.

Contudo, as cores da cidade lhe custaram a voz do poço. Nada poderia ser escutado mais. Nem naquele dia, nem no outro e nem no outro.

O senhor A tentou continuar com sua rotina, mas como? Todos ainda viam cinza, pensavam cinza, as cores tinham se despertado apenas na visão do senhor A. Então, todos começam a falar dele "O senhor A era tão sensato, acho que ficou doido de tanto cinza".

Ninguém acreditava naquela história, até porque o senhor A ainda era cinza. Mesmo que tudo a sua volta não o fosse mais. O cinza herdado de si ainda permanecia ali.

Então, foi em um dia de amarelo bem claro e sem nenhum cinza para contar a história, que o senhor A resolve fazer o que nunca fez, o que nunca imaginou fazer.

Senhor A acordou cedinho, pegou o seu balde cinza e velho, foi até o poço. Chegando lá, ele amarrou bem a corda e se acomodou dentro do balde, que naquele momento parecia maior e espaçoso, como um barco.

E assim, ele lançou e lançou a corda. Puxou e puxou a corda.

Senhor A viu o que nunca tinha visto, escutou o que nunca tinha escutado, viveu o que nunca tinha vivenciado.

E de repente o seu barco ficou maior, e maior, ora era uma canoa, ora era seu lar, ora era seu navio de viagem e aventuras.

Então é assim que nos sentimos livres? Pensou o Senhor A.

Assim como não sabemos como as histórias começam... algumas não tem um fim apenas, elas continuam e se perpetuam nas memórias, nas lembranças, no coração.

Acredito que o engraçado senhor A está bem e vive cada vez mais com o seu barco, se ele encontrou a voz?

Bem... talvez isto seja uma outra história.

Apenas Ana
Enviado por Apenas Ana em 20/02/2024
Código do texto: T8003214
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