FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

 

CAPÍTULO 10

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MERGULHADO EM PAPÉIS, ARTHUR TENTAVA TERMINAR um projeto que havia sido aprovado pelo cliente naquela manhã, mas que havia exigido algumas modificações. Só então ele começaria o projeto do Sr. Lopes. Ele tinha planos de visitar, naquela semana, a casa que seria demolida, o terreno e o edifício que seria reformado. Só assim ele começaria o anteprojeto. Não haviam estabelecido um prazo, mas devido a dimensão do projeto Arthur calculava que levaria, só no anteprojeto, uns quinze dias úteis.

Por volta das quinze horas Arthur já havia feito uma dezena de tentativas de modificações no acabamento.  Era algo tão simples. Só que ele não conseguia se concentrar. Na lixeira de metal, assim como em seu entorno estava o resultado dessas tentativas: uma montanha de papeis amassados, às vezes atirados até com certa violência. Vez ou outra alguns iam parar aos pés de algum funcionário, o que andava provocando naquele imenso escritório interligado, algum ti ti ti.

O pensamento de Arthur voava como aquele bando de pássaros que passara bem diante de sua janela. Foi então que ele se levantou e, de forma quase brusca, pegou seu sobretudo cinza no encosto da cadeira e comunicou a Mário que ia sair.

— Vou caminhar um pouco. Qualquer problema me encontre no celular.

—Está tudo bem? — Mário parecia preocupado, pois jamais o vira perder a paciência com seus projetos. Por isso ousou fazer uma brincadeira na esperança de descontraí-lo. — Vai encontrar a lua com a boina modelo francesinha?

A brincadeira de Mário, porém, não surtiu o efeito esperado, porque Arthur nem se deu ao trabalho de responder e saiu.

Mário deu de ombros e voltou ao trabalho. Apesar de ser seu amigo, Arthur raramente falava de seus problemas pessoais.

 

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Era mais um dia de vento afoito, de sol preguiçoso e de algumas nuvens que ameaçavam encobrir o céu.

Depois de caminhar uns quinze minutos, Arthur dobrou a esquina e entrou na Rua Tonelero. Algumas pessoas caminhavam devagar, mas decididas, pela calçada. Um senhor e uma senhora idosa, uma mulher de uns quarenta anos, um menino... Certamente algum compromisso os esperava em algum lugar ainda que fosse o pão quentinho na padaria, a visita ao médico, um jogo de futebol com os meninos do bairro... Poucos carros iam e vinham numa velocidade que parecia abaixo do permitido.

Arthur, com as mãos enfiadas nos bolsos do Sobretudo foi descendo a rua lentamente. Ele que sempre fazia suas caminhadas na Rua Croata, de repente havia descoberto um motivo para caminhar por ali na Rua Tonelero: a esperança de encontrar a menina da boina azul.

A hora escolhida para a caminhada fora a mesma daquele primeiro encontro. Ele havia seguido sua intuição e, por isso lá estava ele, o coração ansioso observando cada casa na esperança de vê-la sair de alguma. Sua intuição também lhe dizia que ela morava naquela rua e estava certo. Por isso, foi com o coração disparado que a avistou caminhando apressada pela calçada da rua.

Ainda de longe, ele sabia que era ela. A saia Três Marias do vestido de estampas miúdas ondulando em seu caminhar. Dessa vez, no entanto, na cor verde menta e, protegendo-a do frio, um cardigã de tricô creme.  Nos pés, os mesmos coturnos do outro dia e, na cabeça uma boina de tricô. Não a azul. Dessa vez na cor creme, e não tinha nada de francesinha, aquele estilo meio tombado de lado. O modelo que ela usava agora era um estilo catavento, e estava bem encaixada na cabeça.

Sim, era ela. Com aquele jeito de se vestir descontraído que a fazia parecer uma menina inocente. Difícil se enganar. Arthur apressou os passos para alcançá-la.

Lívia pressentindo a presença de alguém se aproximando, parou e se virou. Embora parecesse assustada não deixou transparecer e, com o coração saltando no peito encontrou coragem para perguntar:

— Você está... Me seguindo?— A voz saiu trêmula.

— Não... Imagina... — respondeu Arthur meio gaguejando. — Estava apenas caminhando por aqui. —justificou. O que não deixava de ser uma verdade que justificava outra verdade.

—Você mora por aqui? Nunca o vi antes... — Lívia perguntou um pouco desconfiada, ao mesmo tempo em que observava, além dos olhos negros, o seu cavanhaque que lhe dava um ar mais maduro.  Sentiu um rubor lhe subir às faces, pois se lembrara da cena de uns dias antes.

Arthur sorriu percebendo o rubor do rosto de Lívia e desejou tocar aquela pele suave. Tal desejo fez o próprio rosto queimar.

—Não... Não moro nessa rua. Trabalho aqui perto. Ali na Rua Croata. — E apontou na direção daquela rua.

— Você trabalha na rua de lá e veio caminhar nessa rua? — Lívia questionou.

— É que às vezes ando um pouco mais... E também porque gosto dessa rua. —disse apontando as árvores pelas calçadas e alguns edifícios logo adiante.

 —Ah!... — Lívia ficou por instantes olhando aqueles olhos negros e incomodada começou a caminhar de novo com passos apresados.

—Posso... te acompanhar?—Arthur perguntou apressando os passos atrás dela.

—Não estou fazendo uma caminhada. —respondeu Lívia um pouco rude. — Estou indo à padaria e estou com pressa. — falou pensando na mãe que deixara sozinha em casa e no lanche que precisava preparar. Mas uma parte de Lívia queria que ele a acompanhasse.

— Também tencionava comprar um lanche. Podemos ir juntos? — E continuou caminhando ao lado de Lívia que, sem argumentos e revirando os olhos, deixou-o segui-la até entrarem na padaria Laika, onde, como sempre, pediu leite e dois pães de milho. Arthur ficou ao seu lado observando o ambiente.

 — Não vai pedir seu lanche? — Lívia perguntou desconfiada daquele moço bem vestido que trabalhava na Rua Croata e caminhava na Rua Tonelero e tencionava comprar um lanche tão longe do trabalho.

—Ah! Sim... O lanche... — disse dirigindo à Madalena, a balconista que sempre atendia Lívia e que agora o encarava curiosa, pois nunca o vira por ali. Além disso, achou estranho o fato de Lívia estar acompanhada. Isso nunca tinha acontecido antes. Será que ela tinha arrumado um namorado?

Arthur finalmente pediu um pedaço enorme de torta de frango com ervilhas e saiu correndo para alcançar Lívia, que apressada, já atravessava a calçada.

— Ai tem coisa... — disse a balconista desconfiada, pois Lívia nem lhe respondera quando enviara lembranças à sua mãe.

 

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— Olhe nos despedimos aqui ok? — Lívia parou na calçada quando Arthur se aproximou mastigando um pedaço de torta. —Estou mesmo com muita pressa— disse ela tentando conter um leve sorriso diante da cena: um moço elegante vestido com um sobretudo de lã caro comendo um enorme pedaço de torta e espalhando ervilhas pelo chão.

Lívia então teve certeza que o lanche era apenas uma desculpa para segui-la e sentiu-se, de certa forma, lisonjeada, mas precisava mesmo despedir aquele moço, pois suas obrigações a esperavam em casa. O lanche da mãe e mais uma aula de pintura.

— Tudo bem, não pretendo te atrasar mais— disse Arthur, decepcionado e balançando a torta no ar.

Lívia riu da cena e começou a andar apressada. Arthur pela primeira vez sentiu medo. Medo de não vê-la mais, pois nem sequer tinham se apresentado.

—Quero te ver de novo... — Arthur ousou dizer quase gritando porque Lívia já alcançava o outro lado da rua e atravessava a praça de frente. Ela parou e se virou e, mais uma vez Arthur imaginou a “Moça com brinco de pérola” de Johannes Vermeer. A boca entreaberta de Lívia queria dizer algo, mas ficou apenas o observando. Sim, ela também queria vê-lo de novo e por isso levantou a mão acenando-lhe. O aceno era uma promessa velada.

Arthur fez uma reverência como da outra vez, com a diferença de que, dessa vez, segurava um pedaço de torta na mão e o movimento, fez com que mais ervilhas se espalhassem pelo chão. Lívia riu de novo da cena com a mão na boca e seguiu apressada pela rua.

 

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Arthur ficou ali plantado no meio da praça cheia de árvores sacudidas pelo vento. O riso de Lívia pairando no ar. Para Arthur aquele riso, ainda que fosse um gracejo, coloriu sua tarde e, para ele, era a promessa de que a veria de novo. E ele a viu outras tantas tardes, naquela mesma hora, como se estivesse tudo combinado. Nunca Arthur esperou tanto pelas quinze horas da tarde e nunca Lívia ansiou tanto para ir à padaria comprar o leite e o pão de milho.

Nessas caminhadas foram descobrindo coisas um do outro. Lentamente...  Lívia lhe contou da mãe e sua doença, do curso de Artes Visuais, das aulas particulares de pintura, do pai que partira...  Arthur falou do seu trabalho como arquiteto, das dificuldades para se formar e outras coisas sem importância.

Depois de quinze dias de encontros casuais, Arthur não sabia ainda onde ela morava, pois Lívia sempre o despedia antes de chegar à sua casa. Mas, um dia, porém, entretidos que estavam a caminhar e conversar, Arthur tomou a mão de Lívia e ela não a retirou como das outras vezes. Caminharam em silêncio e Lívia quase sem perceber, parou bem em frente ao velho e charmoso portão de onde morava.

O vento estava afoito também naquele dia e soprava frio. Lívia, apesar de estar com um casaquinho de lã, estremeceu. De frio e por Arthur estar tão perto que seria impossível fugir. Ela sentia o calor de sua mão na sua, enquanto a outra se erguia para colocar no lugar uma mecha de seus cabelos que o vento ousara tirar. Só para dar a Arthur, quem sabe, a chance de recolocar no lugar. E, depois que o fez, deslizou a mão naquele rosto alvo e perfeito até encontrar a linha de seus lábios. 

Lívia olhava-o trêmula. A certeza do beijo se aproximando com rosto de Arthur.  O perigo eminente. Ela não se esquivou. Corajosa decidiu ficar e descobrir o que a aguardava no minuto seguinte.

E então o beijo aconteceu. Leve, simples e puro. E foi como se Lívia, de repente, subisse a um céu onde não tinha nuvens, puramente azul, diferente daquela tarde fria e quase nebulosa, diferente de seus dias que se arrastavam lentos e cheios de medo de perder a mãe. Por pouco não deixou cair a sacola onde levava a caixinha de leite e os pães de milho. Quando abriu os olhos viu Arthur fitando-a. Os olhos negros nos seus e o sorriso de sempre. O sorriso meio maroto, meio sério e decidido.

— Nos vemos amanhã? —Arthur perguntou já sabendo a resposta e fez uma reverência.

— Sim... — respondeu Lívia num fio de voz e, virando-se subiu a escada correndo.

 

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Foi nesse momento que Arthur, ao observar Lívia subir os degraus, reparou na casa onde ela morava. Ele finalmente percebeu que aquela bela e antiga casa era a mesma que o Sr. Lopes pretendia demolir dentro de pouco tempo para dar lugar a uma área de lazer de seu condomínio.

 Então sentimentos de raiva cresceram dentro de si. Raiva do Sr. Lopes. Raiva do mundo capitalista que destruía patrimônios históricos e velhas histórias sem nenhuma compaixão. Raiva de si mesmo porque seria ele que criaria o projeto.

E Lívia, para onde iria com sua mãe? Ele não queria fazer parte naquele projeto destrutivo. Ele precisava descobrir uma forma de impedir aquela demolição. Ainda mais agora que sabia que Lívia morava ali.

 

 

 

CONTINUA...

 


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