FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
CAPÍTULO 7
DEPOIS DO INCIDENTE COM A BOINA DE LÍVIA, ARTHUR dobrou a esquina e entrou na Rua Croata. Caminhava apressado, pois já estava quase atrasado para a reunião das dezessete horas.
No entanto, o que povoava seus pensamentos era a imagem de Lívia. Chegou a imaginá-la como a menina do quadro “Moça com brinco de pérola”, uma tela criada em 1665 pelo pintor holandês mais famoso e importante do século XVII, Johannes Vermeer. Embora Lívia não trouxesse nenhuma pérola na orelha, trazia o mesmo ar doce, angelical e levemente sensual da moça da tela. Arthur havia conhecido a obra quando estivera na charmosa cidade de Haia na Holanda e visitado o Museu Mauritshuis localizado nada menos que na mansão do nobre Maurício de Nassau, ex-governador do Brasil no tempo das invasões holandesas no Nordeste do país.
Arthur havia viajado para Holanda para estudos sobre arquitetura holandesa e passara um dia em Haia conhecendo edificações históricas como a arquitetura gótica do Ridderzaal que abriga eventos do parlamento; a Grote of Sinf-Jacobskerk, uma igreja protestante considerada uma das construções mais antigas de Haia; a Old City Hall, construção renascentista que abrigou eventos da elite e família real, e, claro visitou o pequeno Gabinete Real de Pintura, o Mauritshuis onde conheceu “A moça com brinco de pérola”, que, inclusive, virou filme em Hollywood em 2003.
Arthur sorriu recordando aquele olhar angelical e aquela boca levemente entreaberta que parecia saído da tela do pintor holandês. De fato aquela imagem havia perseguido Arthur depois da viagem à Haia e agora viera personificar ali bem diante dele, com a diferença de que, no lugar do lenço azul, havia uma boina de tricô azul que ele ajeitou no rosto da menina como se restaurasse a tela para a sua realidade.
Depois de passar pela portaria remota do edifício, cujo reconhecimento e permissão para entrar eram feitos através de um software de monitoramento que liberava o acesso por meio de dispositivos de identificação de alta tecnologia, Arthur atravessou um jardim de porte médio. Ele sempre parava nesse jardim para admirar as suas linhas nítidas dentro de uma geometria perceptível e objetiva. Havia simplesmente alguns canteiros com gramíneas que ladeavam um pequeno lago. Nada muito rebuscado ou desordenado. Ou seja, quando Arthur o projetou, o foco era alcançar uma unidade onde houvesse harmonia estética e nitidez. Nessa tarde, porém, o foco não era esse belíssimo jardim minimalista. Arthur nem se deu ao trabalho de parar, pois estava apressado e, além disso, seus pensamentos estavam desordenados. O pequeno lago ficara invisível e nem mesmo o vento batendo em seu rosto tinha mais importância tanto quanto as imagens da menina da boina azul.
Ao atravessar o jardim, Arthur apressou os passos entrando no estacionamento que parecia não ter fim. Alcançando o hall do elevador apertou o botão para o quinto andar. Diante da enorme porta de vidro que apareceu na sua frente, Arthur apertou mais um botão, dessa vez fazendo uma espécie de leitura biométrica e a porta abriu-se automaticamente para que entrasse em seu enorme escritório onde seus funcionários trabalhavam praticamente conectados uns com os outros e com o mundo digital. Alguns conversavam entre si e riam segurando xícaras de café aproveitando a pausa da tarde.
Com um gesto ele saudou a todos e se dirigiu ao seu próprio local de trabalho que, apesar de estar no mesmo ambiente, era um pouco mais elevado, demonstrando, talvez, sua posição hierárquica, o que para Arthur pouco importava. Mas em mundos de negócios há certos protocolos a seguir.
Via-se dali de sua mesa, um amplo espaço de onde se podia observar tudo naquele escritório. Podia-se também observar o mundo lá fora através das janelas de vidro: o imenso céu azul daquela tarde e até os movimentos do espaço como as belas revoadas de pássaros.
Tudo ali era tão nítido e tão aberto que Arthur se sentiu como se ele próprio fosse transparente e todos pudessem ver seu interior. Sentiu-se um pouco incomodado e desejou um lugar onde pudesse ficar sozinho e reviver as belas lembranças daquela tarde. Ele caminhou até sua mesa e sentou-se na cadeira de couro com designers anatômicos e pés de metal prateado. Depois a girou até ficar defronte a janela para observar o céu azul daquele dia de inverno. Veio-lhe novamente à mente a imagem da bela menina de vestido azul florido e coturno nos pés, correndo atrás de uma boina de tricô arrastada pelo vento.
—Isso está virando obsessão—pensou. Mas como esquecer aquela cena, ao mesmo tempo, tão surreal e tão doce? Como esquecer aqueles olhos cor de mel? Como esquecer aquela boca entreaberta, pensativa, em algum devaneio, solícita, quem sabe, sem, no entanto, ser explicita? Como esquecer aquelas ondas castanhas acima dos ombros? E aquelas mãos pequenas e delicadas?
Arthur sabia... Sim, Arthur sabia que aquela imagem seria sua para sempre como sempre fora a imagem da “Moça com brinco de pérola”. E mergulhado assim nessas lembranças recentes nem percebeu que Mário estava bem diante de sua mesa a observá-lo.
— Ei Arthur onde você está? — disse ao mesmo tempo em que estalava os dedos bem diante dele. —No mundo da lua?
Arthur voltando à realidade se sentiu, de certa forma, pego em flagrante. Desconfiou que estivesse sendo transparente demais. Mas sorriu e disse:
—Estou bem aqui cara, não está vendo? — Mas ele sabia que estava no mundo da lua sim. Uma lua que iluminou sua tarde.
— Ufa... Cheguei a pensar que estivesse há 384.405 km daqui, perdido naquelas crateras enormes, quem sabe na cratera Aitken. — respondeu Mário com um ar cínico.
— Cratera Aitken? Mário você não tem jeito mesmo. Não, eu não estava lá, até porque essa cratera fica no lado oculto da lua. — Arthur riu das brincadeiras do assistente.
—Diga-me, astronauta sonhador... Como é a lua? A sua lua. —Mário perguntou com ar ainda brincalhão.
—Nem te conto... Não tem cratera Aitken, nem mares Imbrium ou Serenatis. Na verdade, ela usa boina azul de tricô, modelo francesinha — Arthur respondeu se lembrando de Lívia.
—Sério cara?—Mário arrastou uma cadeira e se sentou bem de frente a Arthur. —Estou achando que o vento te nocauteou direitinho e que o impacto foi maior que o dos meteoritos na superfície lunar. —E deu uma gargalhada fingindo observar bem de perto o rosto de Arthur.
— Huum... Deixa-me ver... Não tem marcas de bofetada não. Mas talvez o golpe tenha pegado aqui... — E espetou uma caneta bem em cima do tórax de Arthur.
— Acertou. Fui nocauteado sim. — Arthur disse pensando novamente na doce menina que havia nocauteado seu coração.
— Foi? — Mário que já se afastava se virou de forma brusca. — Me conta essa história direitinho. Não vá me dizer que o vento também usa boina azul modelo francesinha.
—Não. Não vou contar. E acho que você está se metendo demais na minha vida. — Arthur respondeu simulando um ar zangado.
—Humm... Talvez... — Ele fez um ar pensativo.— Sou metido sim. Mas porque sou, acima de tudo, seu amigo e estou achando que precisa de umas férias. — disse coçando o queixo coberto por um cavanhaque estilo Van Dyke que o deixava meio parecido com David Beckham, o ex-futebolista inglês. Diferente de Arthur que mantinha o estilo clássico de cavanhaque com os fios completando toda a extensão do rosto, o que o deixava mais parecido com o ator Keanu Reeves no filme “Bata antes de entrar”.
— Mas por enquanto penso que não vai ser possível você tirar férias Arthur— Mário completou com ar já mais sério.
— Por que não? Ei, quem é o chefe aqui? — Arthur girou a cadeira e bateu o punho na mesa chamando a atenção de todos nos escritório, o que fez Mário rir ainda mais.
—Ei, calma... Você é o chefe. Mas quero apenas te lembrar de que vem trabalho duro por ai. O projeto do proprietário do Edifício da Rua Tonelero... Sugiro que, pelo menos por enquanto, saia da órbita lunar.
— O Sr. Lopes? —Arthur perguntou ainda meio iluminado pela lua diurna, ou melhor, sentindo o golpe cruzado que acertou direto seu peito quando caminhava pela Rua Tonelero.
— Ele mesmo. — Mário respondeu já com ares profissionais—A intenção dele é criar um novo prédio de apartamentos pequenos contíguo ao já existente e fazer uma reforma nos antigos. Como pode notar tem muito trabalho pela frente e vai ter que esquecer, pelo menos por hoje, a lua, o vento e a boina azul. Ou o que quer que seja que está dentro dessa cabeça.
Rindo, Arthur atirou uma caneta em Mário que se desviou e acabou caindo na xícara de café de um dos funcionários. O eco das gargalhadas ecoou pelo escritório.
De repente Arthur assumiu um ar sério, embora o riso ainda estivesse no canto de sua boca.
— Ao trabalho... —E assumindo um ar profissional, ajeitou a gola da camisa polo branca sob o suéter preto e tentou personificar o arquiteto que existia dentro dele.
— Me parece que o espaço ali é bem pequeno. O que Sr. Lopes estará planejando afinal?— Arthur questionou remexendo uns papéis sobre a mesa.
—Isso veremos agora mesmo. Eis o homem entrando no escritório. — Mário disse apontando em direção à enorme porta de vidro que se abriu para dar passagem a um senhor que aparentava ter uns oitenta e poucos anos e se equilibrava com elegância numa bengala de caminhada.
O Senhor tinha porte aristocrático apesar da pequena dificuldade de locomoção, resultado dos anos que carregava nas costas. O olhar que possuía determinação e autoridade varreu todo o escritório como se avaliasse cada coisa e cada pessoa que ali estava.
O Sr. Lopes tinha uma presença marcante, que beirava a arrogância, o que impressionou Arthur logo de cara e, de certa forma o incomodou um pouco. Mas ele estava acostumado a lidar com personalidades de todos os tipos e, às vezes suas ideias que beiravam ao extremo como um projeto de quarto encomendado por um casal no andar térreo de uma mansão. O piso do quarto possuía uma espécie de trilho no lugar dos pés da cama que, ao ser acionada simplesmente se movia para o jardim para receber o sol da manhã ou o ar da noite.
De qualquer forma, o mais importante para Arthur era não fugir de seus princípios éticos. Quanto ao estilo arquitetônico que defendia, ele podia até abrir brechas e inventar coisas mirabolantes, mas prezava, sobretudo, a honestidade e o bem estar das pessoas e da natureza. Ou seja, além de minimalista, ele era também humanista.
Arthur levantou-se e, seguido por Mário, foi receber seu novo cliente.
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