Recomeço
O dia acabava de nascer. Na parede suja, o quadrado de luz ainda tímido começava a se desenhar, como acontecia todos os dias nos últimos quatro meses. Os oito companheiros que dividiam com João aquele espaço para cinco pessoas também começavam a acordar de mais uma noite mal dormida e mal acomodada.
Ouviu o barulho das portas de ferro antigas e sem lubrificação e os passos pesados que se aproximavam pelo corredor escuro.
⸺ João da Silva! Vamos embora. Seu alvará saiu.
João mal podia acreditar. Um alvará de soltura para um pobre desgraçado que não dispunha de recursos para pagar um advogado era muito bom para ser verdade. Despediu-se dos companheiros, que gostaram do fato de que a cela estaria menos apertada, ao menos por enquanto, e acompanhou o carcereiro.
Não tinha nada para levar, a não ser os documentos e o surrado Novo Testamento, que foi o seu conforto durante esse período difícil. Saiu pela porta da frente, livre. Ninguém o esperava.
João foi andando pela rua do bairro isolado onde ficava o presídio. Não sabia como voltar para casa, que ficava a pouco mais de cem quilômetros de distância. Estava sem dinheiro, sem profissão, sem perspectiva e agora com uma ficha corrida que manchava o seu nome. Sentiu-se sozinho e abandonado.
Enquanto caminhava sem rumo, passava um filme pela sua cabeça. Memórias de como teria chegado a este ponto. Muitas e desordenadas lembranças. Um enorme arrependimento.
Estava com 29 anos. Lembrou de suas três crianças, às quais amava mais que tudo neste mundo. As gêmeas doces, sapecas e de cabelos cacheados, que corriam para o seu colo quando retornava do trabalho, todo sujo, de mais um dia de pedreiro na construção civil. Um menino esperto, de olhos expressivos e muito falante, que adora brincar com as suas ferramentas e diz que quando crescer vai construir prédios igual ao papai. A esposa, dois anos mais nova, trazia na aparência as marcas da vida difícil que a deixavam com o aspecto de dez anos mais velha. João amava a sua mulher e sonhava em dar uma vida melhor para a família.
E foi no desespero de saldar dívidas, de comprar coisas, de dar um passo maior, de querer os filhos felizes, de ver a amada sorrir, que um dia aceitou a proposta de assaltar o maior supermercado da cidade. A ideia foi de um colega da obra que havia trabalhado no supermercado e sabia onde ficava o cofre.
Sem experiência no negócio de furtar coisas, planejaram o assalto junto com outros dois colegas, um deles já com algum conhecimento do ramo. Entretanto não foi o suficiente. Deu tudo errado. O supermercado tinha um bom esquema de segurança e, no salve-se quem puder, os três conseguiram fugir, deixando João à mercê da polícia que chegava ao local.
Era um bobo, sem histórico no crime, arruinando a sua já penosa vida e que agora se desesperava ante aquela situação. Foi levado para a delegacia e, sem ter quem interpelasse a seu favor, foi enquadrado perante a pressão do dono do supermercado, amigo do delegado de plantão. Assim veio a conhecer a insalubre prisão.
João não se sentiu ofendido por não ter recebido nem uma visita da esposa nesses quatro meses. Estava envergonhado. Ela, com certeza, estaria muito magoada. Além do mais, a distância era um obstáculo considerável para quem agora cuidava sozinha de três crianças.
Não teve coragem de pedir uma ligação para ela nesta manhã. Teve receio de não ser atendido. Teria ela coragem de pedir alguém para ir buscá-lo? Como ele encararia um conhecido chegando na porta do presídio? Como olharia novamente para os filhos?
Chegou a uma parada de ônibus, mostrou o alvará de soltura ao motorista que concordou em levá-lo até ao centro da cidade, no entanto, não teve a mesma sorte no guichê da rodoviária. Percebeu que a volta para casa seria um desafio. Voltou às ruas. Despido do seu orgulho, naquele mar de gente desconhecida, começou a mendigar uns trocados para pagar a passagem.
Ao final do seu primeiro dia de liberdade, João havia conseguido pouco mais de um terço do valor da passagem que o levaria à sua família. Precisou gastar um pouco do que conseguiu para comer alguma coisa, também não resistiu ao pagamento da taxa para utilizar o chuveiro quente na rodoviária. Há quatro meses não tomava um banho decente.
Passou a primeira noite ali mesmo, no banco do saguão onde os passageiros aguardavam o embarque. Foi o seu melhor sono em quase vinte semanas. Ainda passaria outras duas noites num albergue, antes de conseguir juntar a quantia suficiente para comprar a tão sonhada passagem. Nesses quatro dias havia ganhado uma calça e duas camisas que contribuíram para melhorar a sua aparência.
Enquanto aguardava o horário da partida do ônibus para a viagem de aproximadamente uma hora e meia, João, apreensivo, conjecturava sobre a sua chegada, o encontro com a família, o olhar dos filhos, o perdão da esposa. O preocupava ainda se haveria de conseguir trabalho e retomar os rumos da sua vida. Na mente levava uma lição: não valia a pena tentar dar um jeito buscando o lucro fácil, sem esforço. Estava convicto do certo e queria usar a sua experiência para orientar os filhos no bom caminho. À sua mente veio a frase das lavadeiras na beira do rio, que leu num livro que andou folheando nesses quatro meses de detenção. Não se lembrou do nome do livro, apenas do gato preto e dos sapatos vermelhos da capa. A frase era: “Faiz o que é cért, meu fi, a força do bem vai protegê ocê”. Este seria o seu lema de vida a partir de agora.
A estrada se alongava, parecia não ter fim. Os pensamentos embaralhavam, momentos de esperança intercalavam com instantes de medo. As lágrimas embaçaram a sua visão algumas vezes. As incertezas em relação ao futuro lhe provocavam cólicas a cada curva.
Por fim, desembarcou. Não estava longe. Iniciou a caminhada com passos vacilantes. De cabeça baixa, dobrou a última esquina e seguiu em direção à casa. Não preparou um discurso, não premeditou nada. Estava inteiro, nu em sua verdade e nas suas intenções.
Tocou a campainha e esperou. Ouviu o barulho da chave que destrancava a porta...
Imagem: Gisely Poetry