JOANA-DE-BARRO

Havia muitos dessa espécie no arvoredo diante do edifício. Joões e Joanas a ciscar por ali e a recolher o barro com que constroem seus lares.

O canto possante, surpreendentemente forte para o tamanho do corpo, chega a incomodar os moradores na hora da sesta ou em outra ocasião que reclame silêncio.

Fora disso, pouca atenção lhes é concedida.

A penugem, de um bege fosco, não contribui para conferir maior destaque à sua presença. Mal serve pra dar pena.

Joana ressente-se, porém, da indiferença com que é tratada.

Como todo ser, espera alguma consideração, sonha até com o amor.

Qual! Quanta ilusão tola!

Seu cérebro, atrofiado pela falta de acesso à educação, assemelha-se ao da maioria dos congêneres que alçam vôo incerto, sem estarem habilitados a subir na vida.

Pobre dessa joana-de-barro para quem nenhum poeta de peso perderá seu tempo em dedicar seus versos.

Insignificante, resta-lhe perambular pela grama, remexendo folhas, catando barro e fugindo à eventual aproximação de estranhos. Mesmo quando se arrisca a ficar parada, sem fugir de pronto, o máximo que consegue é algum olhar de piedade. No mais das vezes, contudo, recebe olhares de desdém.

Sofre calada, quase sempre. Se canta, mal revela a tristeza do seu viver pé-no-chão, entre folhas tão secas quanto ela.

Faz de tudo para permanecer fiel e não causar insatisfação ao companheiro, cuja cantoria ilude a ponto de transformá-lo em ídolo. Ela bem sabe, no entanto, que, se a situação aperta, ele é capaz de entregar a própria mãe. Aprisionar sua parceira em casa, então, constitui tarefa fácil e típica para sua espécie.

Dura lei da sobrevivência!

Quase não sobra tempo para divertir-se. Joaninha labuta de sol a sol, expõe o corpo frágil e desbotado às intempéries, naturais e artificiais.

O vento a castiga sem dó, altera seu curso de vôo, agita suas roupas como a querer despedaçá-las.

A chuva, que mata a sede de animais e vegetais, também se mostra cruel ao exagerar na dose e matar os sedentos. Joana tenta proteger-se em sua casinha de barro, mas frequentemente se vê forçada a caminhar debaixo do temporal, encharcada.

Não bastasse a Natureza hostil, a hostilidade do bicho homem aparece quando menos se espera. Tome pedra e tome pau a zunir, por pouco atingindo a infeliz criatura.

Insultos, deboches, ameaças, doenças, fome, tudo se torna um imenso penar.

Um dia, a pobre joana-de-barro sucumbe, perde as forças e entrega os pontos, relegada à sua miséria.

Pode ser que alguém chore sua partida. A maioria seguirá indiferente ao drama da morte ou sequer tomará conhecimento de que aquele ser cessou de existir.

Joana! Joana-de-barro! Mais uma simples e indefesa passarinha que passará de uma dimensão pedestre para outra, ignorada.

Revista LiteraLivre n. 27, maio/junho 2021 e edição Melhores do Ano