FOI O VENTO

 

POR: Sônia Machado

 

 

CAPÍTULO 6

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AINDA EM FRENTE AO PALACETE, SR. LOPES BUSCOU lembranças da esposa Leonor e encontrou-a, sempre vestida em tons de azul, vagando entre aquelas paredes cheias de relevos, afrescos e arabescos, fiscalizando cada espaço. Ora ajeitando o enorme vaso de flores no aparador em frente ao vitral da sala de jantar, ora trocando as flores da mesa redonda da sala de jogos, ora ajeitando os candelabros da mesa como se medisse cada distância entre eles e as bordas, ora simplesmente admirando os enormes afrescos da sala de estar.

Um dia, Sr. Lopes, ao chegar tarde da noite, encontrou-a no Hall de entrada,  sentada na poltrona lilás bem ao lado da porta, depois do primeiro sobrearco. Um livro grosso no colo.  Parecia esperar alguém. Talvez os filhos. Ou ele? O livro era o pretexto das horas intermináveis de uma mãe e esposa. Assustou-se quando o viu, como se ele a tivesse pegado em uma falta grave. Afinal era estranho estar naquele lugar apenas de entrada e saída.

— O que faz aqui? —Ele havia perguntado. Com certeza Sr. Lopes desejaria tê-la encontrado na sala de estar, na poltrona imensa bebericando um licor qualquer e folheando revistas de moda e sorrisse quando chegasse, ainda que esse sorriso fosse falso, apenas para manter as aparências. Mas não, lá estava ela contando as horas em silêncio, recebendo-o com as pálpebras tristes e monótonas no Hall de entrada.  

—Desculpe... — Ela disse apenas.  Afinal que justificativas teria para dar diante do olhar duro do esposo? E levantando-se, foi logo ajudando o esposo a tirar o casaco.

Leonor sempre bela, serena e silenciosa, administrava a rotina do enorme palacete como manda a etiqueta social para esposas de homens ilustres.  Mas a sua serenidade às vezes irritava Sr. Lopes e servia de justificativas para suas escapadelas extraconjugais que nem sempre tentava esconder. 

— Eu vi você e Estela juntos no minarete... — Ela havia dito sem levantar os olhos do prato numa noite em que jantavam sozinhos. Ele numa ponta da mesa. Ela na outra, da enorme mesa retangular que se estreitava nos cantos e, entre eles, um enorme candelabro em bronze com banho de prata, todo trabalhado e com lugares para cinco velas.

Leonor, num impulso, havia ousado lhe cobrar o flerte entre ele e uma gestora da Bolsa de Valores que aparecera outro dia com pretexto de falar de negócios e Sr. Lopes a levara para conhecer toda a casa, inclusive o minarete.

—Estava me seguindo? — Sr. Lopes parou o garfo no ar e encarou a esposa. Ele certamente não imaginava que a esposa fosse capaz de fazer tal coisa. Não era do seu feitio ainda que tivesse certeza da traição. Sofreria calada.

— Não... Não o segui. Apenas pensei em comunicá-los que o almoço seria servido. — confessou com o olhar baixo, arrependida, talvez de ter seguido seus instintos.

 Sr. Lopes desconfiava que ela houvesse sim ido chamá-los na esperança de pegá-los no flagra. E pegara, porque ele se lembrava de ter puxado Estela para perto de si e a beijado.

Fora a primeira e única vez que a esposa questionou sua fidelidade, pois ele simplesmente lhe respondera:

—Então você viu... — E não terminou a frase que com certeza Leonor havia terminado em seu pensamento. —Agora já sabe que preciso bem mais do que uma esposa submissa. — E simplesmente continuou a comer. Havia cinismo em sua voz

Leonor não respondeu. Duas lágrimas efêmeras responderam por ela. Naquele dia, nada disso importou para Sr. Lopes. Aliás, o irritou ainda mais. Hoje, no entanto, ele reconheceu a dor de sua esposa, e não pode evitar de se colocar no lugar dela.

 Leonor tudo suportava sem deixar de manter sua elegância e beleza no dia a dia porque, apesar de tudo, não queria passar vergonha no esposo que mantinha um status de milionário na sociedade. No fundo, Sr. Lopes admirava seu jeito de ser, sua atitude. Mas teria preferido que ela tivesse gritado com ele naquele dia. Que tivesse lhe atirado aquele castiçal cheio de braços e pontas torneadas. Que exigisse o respeito. Que tivesse até se vingado com algum de seus amigos. Com certeza hoje ele estaria se sentindo melhor.

 

 

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Depois da morte da filha, do neto natimorto e do genro Jorge, Leonor abateu-se de tristeza. Já não se importava em fiscalizar a rotina da casa. Muito menos de colher, ela mesma, as flores que enfeitavam as mesas e aparadores.

Sr. Lopes a encontrava sempre em algum canto da casa, olhando as paredes ou o teto, como se refletisse cada adorno. Ela passou a se refugiar no porão, uma espécie de Ateliê que de nada servia, pois não havia naquela casa nenhum artesão ou artista. Era considerado mesmo um refúgio que não tinha a sofisticação do restante do palacete.

Contava-se que na época do tio e padrinho do Sr. Lopes, o espaço era usado pelo velho solteirão para pintar. Ele, embora não fosse reconhecido como artista, se arriscava a pintar telas que evidenciavam o Expressionismo com suas características instintivas, dramáticas e subjetivas, principalmente dos sentimentos humanos. Era um estilo que deformava a figura para ressaltar os sentimentos como o amor, medo, solidão.

Quando Sr. Lopes herdou a fortuna do tio e reformou o palacete para viver com a família, encontrou no Ateliê alguns quadros e, entre eles, um com a imagem de uma mulher com um olhar que expressava tristeza e resignação sob as pinceladas quase irreais assim como as cores. Era uma pintura, cujas características, se aproximavam da famosa tela “O grito”, do pintor norueguês Edvard Munch”.

 Houve rumores de que a mulher da tela fora o único amor do tio do Sr. Lopes. Um amor proibido, pois ela era casada, o que o levou a se tornar um solteirão convicto. Todos os outros quadros encontrados no Ateliê pareciam exprimir angústia, solidão. Ao que tudo indicava, ele expressava na pintura a sua realidade interior.

Foi, então, nesse Ateliê, que Leonor passou a se refugiar com sua dor. Um dia a encontraram caída na sala de estar do primeiro plano do Ateliê.  Ela havia sofrido um Acidente Vascular Cerebral Isquêmico que a deixara incapacitada para andar e falar por mais tratamentos que fizesse. Os médicos acreditavam que ela tinha desistido de viver, por isso os tratamentos não obtinham resultados.

Ela vivia com o olhar no vazio e definhando a cada dia na enorme cama que ainda ostentava um dossel com colunas cheias de adornos e cortinas cor de creme bordadas com fios dourados e flores de veludo cor de vinho. Até que se despediu da vida numa manhã de outono como as folhas que se desprendem dos galhos depois de secas.

Mais uma vez Sr. Lopes, sem demonstrar fraqueza, seguiu a vida com sua família que resumia, depois da morte de Leonor, apenas nele e seu filho Miguel.

 

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 Quanto a Miguel, Sr. Lopes não pode deixar de se lembrar das discussões que viraram rotina entre os dois. Elas começaram quando Miguel se apaixonou por Esmeralda, uma bela e jovem costureira de fundo de quintal. Ele tudo fez, em vão, para que seu filho desistisse da ideia de se casar com ela.  Mas nada foi capaz de separá-los.

Ali, diante daquele palacete, Sr. Lopes, trouxe à tona imagens daquele dia em que o filho saíra para sempre de sua vida. Era o dia do casamento, e ele, numa última tentativa, tentou fazer o filho desistir.

— Miguel, meu filho, pense bem no que vai fazer. Essa é uma decisão muito séria que vai mudar sua vida para sempre. Essa moça não é para você. Quer apenas seu dinheiro. — Ele dissera subindo as escadas atrás do filho que ia se vestir para o casamento.

— Está enganado pai. Esmeralda não liga para dinheiro e entre nós existe amor de verdade. É tão difícil entender isso? Por acaso nunca amou minha mãe para entender?— respondeu Miguel em um tom de voz cansado das tantas brigas que aconteciam entre eles.

 Sim, Sr.Lopes amara sua esposa. Mas era diferente. Eles eram do mesmo nível social. Antes, eram ambos pobres, mas depois ficaram ricos juntos, ganharam status juntos. Era diferente, Sr. Lopes pensava.

— Então essa é sua escolha Miguel? Sinto então te dizer que nossos laços se rompem aqui. — falou com a voz cheia de autoridade.

Miguel parara no meio da galeria que fazia comunicação com os quartos e se virara para ele. Por instantes ficara olhando-o, refletindo, talvez, aquelas duras palavras. Com certeza não imaginava que o pai chegasse tão longe em seu radicalismo preconceituoso.

— Você sai dessa casa hoje e nunca mais volta.  Sai também da administração dos meus negócios. Não é mais meu filho. —E sem mais palavras virou as costas caminhando pela galeria de comunicação. Nunca mais viu o filho. Sequer procurou por notícias. 

Assim, Sr. Lopes perdeu toda a família, mas seguiu em frente sozinho com seu orgulho. Afinal um homem de seu status nunca se deixa abater. Era o que ele pensava.

Aquele palacete, embora fosse sua paixão, já não lhe servia, pois tinha histórias demais por todos os cantos. Ele queria esquecer. Por isso partiu deixando-o ali como um mausoléu de histórias e vidas enterradas.

 

 

 

 CONTINUA...

 

 


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