Baila, bailarina
Noite de lua cheia, no frio do inverno de janeiro. Inverno cearense é época de chuva farta que enche os açudes e traz o verde para os pastos dos gados magros. Alivia a quentura do sol do meio-dia. Ah, banho de bica, que alegria! Apresentações artísticas atraiam a atenção das pessoas que passavam pela rua onde ficava o estimado Teatro Municipal de Amontada, no interior do Ceará. Na correria, muitos rostos iam e vinham felizes, presos em pensamentos, passando sem perceber o que estava acontecendo ao redor. Lá dentro, a visão era espetacular. Mas só entrava pagando e aquela funcionária que ficava no balcão não deixava nem conhecer o teatro vazio antes das apresentações começarem. Acabei pagando meus R$10,00 suados para matar a curiosidade. A primeira coisa que eu vi foram várias poltronas vermelhas distribuídas em dois andares de paredes beges com desenhos renascentistas dourados. Era quase como estar entre a realeza. Me senti tão chique no meio daquela arte. É assim mesmo que se chama, né? Pois vamos que vamos que eu quero é ver. E então eu vi aquela menina bailarina que parecia voar com os pés no chão.
Com suave agilidade, Luma equilibra-se na ponta dos pés, erguendo os braços acima da cabeça, tal qual a auréola de um anjo em rotação. Seus passos precisos compõem uma poesia recitada pelo corpo em movimentos e expressões faciais. Diante de uma plateia imersa nas notas fascinantes de Tchaikowski, ela rodopiava de um lado para o outro do palco, esticando os braços como se fossem as asas de um cisne esbelto prestes a alçar voo.
Sentada na primeira fileira, dona Lucinda cutucava as pessoas que estavam ao seu lado animada. "Olha, olha! Aquela ali é a minha neta. Ela ainda vai se apresentar pelo mundo inteiro. O sonho dela é ir morar na Alemanha."
Um homem bem vestido escutou aquilo, olhou pra menina e gargalhou alto. "É... acho que ela realmente dança bem, mas não sei se é pra tanto não. Precisa ter muito dinheiro pra isso. Se vocês ainda estão aqui é porque falta e falta é muito." Dona Lucinda não pensou duas vezes antes de defender a neta. "Você tá é com inveja. Dança aí pra eu ver. Ah, e isso aí nessa sua cabeça é peruca. Eu conheço de longe. Seu véi careca", disse a senhora sem papas na língua.
"A senhora está é doida. Me respeite que eu sou um dos júris convidados e não vim aqui pra levar desaforo pra casa", retrucou carrancudo. Lucinda, então, revirou ou olhos e cruzou os braços com um suspiro pesado de desaprovação. Logo, ela já havia esquecido do desentendimento e estava animada novamente, pois o brilho nos olhos daquela avó orgulhosa não desaparecia nunca. Vendo sua menininha crescendo e se tornando uma mulher forte e determinada, nada poderia pará-las. Nem mesmo a dor do abandono. As duas só tinham uma à outra, e era mais que o suficiente.
Nesse meio tempo, a apresentação chegou ao fim e a plateia extasiada rendeu-se em aplausos com direito a rosas lançadas ao palco. Luma estava surpresa com a reação do público. Nunca tinha se apresentado pra tanta gente antes. Ela então agradeceu encurvando-se para frente e puxando pelos lados a saia Tutu. Luma estava tão feliz, tão feliz que não conseguia conter o sorriso largo cheio de dentes brancos. Seus olhos procuravam por sua avó e quando finalmente a encontrou, transbordou em emoção. Dizia para si mesma "Nós conseguimos" cada vez mais alto e claro. E a avó, gritava de orgulho "Baila, bailarina. Baila, minha menina".