A doença
— Nossa senhora! Como ele está magro.
— Sim, nem parece aquele Luís de antigamente.
— Ouvi dizer que não tem mais jeito. Coitado. É nessas horas que damos mais valor à vida.
— Pois é.
...
E assim, com a mesma consternação, os vizinhos de Luís continuaram a conversa. Olhavam, de longe, o moribundo que saía da ambulância, prostrado em uma maca, em direção ao lar. Estavam ali para recebê-lo de volta à casa muitos parentes e amigos que há tempos ele não via. Foram esses quem o ajudaram a ir até seu quarto e deitar-se na cama que, sabiam, seria seu leito de morte.
Acalmada a agitação pela sua chegada, todos haviam saído do cômodo, exceto sua mulher e seus dois irmãos, que ficaram posicionados ao lado da cama. Foi então que Luís falou:
— Eu quero ficar só.
Marta, sua esposa, tentou resistir, porém, diante da expressão grave do marido e do hábito que se tornara ouvir-lhe esse mesmo pedido ultimamente, decidiu sair do quarto e sinalizou para que os cunhados fizessem o mesmo.
Estando só, o que ansiava a todo momento, Luís continuou suas reflexões do ponto onde parara quando, ainda no hospital, o médico lhe dissera que ele iria para casa. Perguntava-se: "Qual é o sentido da vida?"
Por vários minutos refletiu sobre a pergunta, só interrompido por algum parente que insistia em perguntar como ele se sentia e se queria companhia, ouvindo sempre como resposta às suas perguntas uma risada irônica e um Não, respectivamente. Deu-se várias respostas do que era o sentido e a razão da vida para os outros, mas para ele, nada; não encontrara sentido algum. Não se lembrava de uma única vez, pelo menos, em que houvesse atinado com uma resposta a essa pergunta, senão através do pensamento superficial de terceiros. Mas tentou não se sentir mal com isso, ao contrário, respirou aliviado com o fato de não possuir um grandioso sentido para a vida, nada em que viesse a embasar toda a sua existência. Pois tinha em mente nesse momento que uma bengala usada por muito tempo deixa de ser um apoio às pernas andantes para se tornar, ela mesma, o sustento do corpo.
Pensando nisso, Luís lembrou-se do dia em que tudo começou, aliás— e só depois foi ter consciência disto—, culminou.
Era um dia igual a muitos outros em sua vida. Acordou, fez seu desjejum e foi ao trabalho. Após encerrado seu monótono, porém cansativo, expediente, foi para casa sem ter parado em local algum. Ao chegar, banhou e foi assistir televisão como de costume. Mas, antes mesmo de sua esposa lhe anunciar que a janta estava pronta, sentiu um incomodo no corpo, embora não soubesse exatamente o que era. Ignorou o desconforto e continuou normalmente sua rotina. Contudo, na manhã seguinte, não tolerou o mal-estar e resolveu ir ao hospital.
Ele tinha febre e dificuldade para respirar, logo pensou se tratar de algum problema respiratório. E estava certo em sua suspeita. Entretanto, o que não suspeitava era que havia algo a mais. Através da bateria de exames que o médico requisitara que fossem feitos, foi descoberta uma doença ainda mais grave. Luís tinha câncer em estágio avançado.
Foi um choque, não só para ele, mas para todos os familiares e conhecidos. "Ele aparentava ter tanta saúde" diziam. Luís teve que ficar internado por dias esperando o resultado de novos exames, sem saber qual seria o seu destino. E lá, no leito do hospital, só e em ócio absoluto, já que recusava sempre quaisquer companhias, dispôs de tempo para fazer o que há muito não fazia: refletir. Refletia sobre os mais diversos temas, como a sociedade, os seres, a vida e a morte. Foi então que se diagnosticou: estava duplamente doente.
Além do câncer no corpo, havia também o câncer na mente; na alma. Estava doente de si mesmo. Mas como "de si mesmo", se nada nele parecia ter germinado de si? Todas as ideologias, os objetivos, os impulsos, os sonhos, as perspectivas e expectativas. Tudo o que ditava sua conduta, todo o alicerce de sua vida. Ele estava doente era daquela parcela imperativa da sociedade que instiga: Vença! Do Estado que determina: Obedeça! Do emprego que resmunga: Produza! Das instituições que proclamam: Adere! Da formalidade, das etiquetas e dos deveres como cidadão, que sussurravam: Corteje! E essa doença psicológica-espiritual a qual há muito havia se apoderado dele, também já se encontrava em estágio avançado.
Diante da situação em que se encontrava, perguntava-se como havia chegado a tal ponto sem ter sentido nunca quaisquer sintomas? Logo viu que a rotina servira como anestesia. Seu cotidiano não lhe deixava tempo para a reflexão. Ele era um Fazedor, não tinha tempo parar pensar. Por que iria um homem pensar no que faz, se o que faz já é o suficiente para garantir a sua existência dentro de um padrão considerado bom pela sociedade?
E ele se perguntava quantas vezes chamara a esposa "Amor", sem sentir o que falava, atado em um casamento no qual havia entrado apenas por conveniências. Quantas vezes havia perguntado se estava tudo bem com os outros, sem se importar com a resposta. Quantas vezes havia desejado boa noite ou bom dia, sem se preocupar com o que iria acontecer a quem lhe ouvia. Quantas vezes nas últimas semanas havia sido acordado, atordoado pelo som do despertador, em vez de simplesmente despertar por falta de sono. Perguntava-se quando foi que concebera os sonhos que tinha: o da casa própria, do automóvel, do emprego estável, do bom salário... sabia agora que não os havia concebido, apenas interiorizado. Perguntava-se quando sua vida e tudo nela havia se transformado numa grande obrigação, um emaranhado de deveres.
Olhava para si mesmo e questionava: quem é este homem que jaz neste leito de hospital e que, quando não tem visitas, passa o tempo todo a pensar, a perguntar e a responder a si próprio. E que preferia assim, estar só, até que respondesse à pergunta que mais o irritava. "Quem sou eu?" Pois não reconhecia no que fora até então a imagem de si mesmo; não via na sua vida o reflexo do que jazia em seu âmago.
Sentia-se como um mosaico do mundo. Como um suporte que, se veio ao mundo vazio, hoje se encontrava cheio de nada do que é seu. Ou mesmo como um redemoinho de ar, carregando em si as ideias exteriores, os conceitos, preconceitos, normas, planos e tudo o mais o que era. O que era, sim, pois sendo ele o ar invisível, ou o suporte vazio, o que mais poderia aparentar ser, salvo o que carrega? Ele era o que continha em si. Mas não queria. Não mais. Queria ser agora um turbilhão de vento impetuoso e jogar fora tudo o que carregava e que já havia se acostumado a carregar. Como mosaico, queria que sua identidade não se desse só pelas peças às quais servia de suporte, mas pelo encaixe e ordenação únicos que dava a elas, além da permanência ou não dessas peças, de acordo com a sua vontade. Como turbilhão, queria que sua identidade se desse, não só pelo que carregava, mas pelo movimento, velocidade e direção próprias do seu vento. Queria, em suma, ser um elemento ativo e modificador do mundo, mais que um mero efeito e uma reação de tudo que ia de encontro a ele.
No dia em que os médicos mandaram Luís para casa, todos sabiam o que significava. A doença era irreversível. Os prantos rolavam enquanto Luís sorria amarelo e com um ar irônico. Só agora que estava morrendo é que sentia a convalescência da alma. Só agora que havia se diagnosticado e se comprometido a viver de acordo com sua essência, aquilo que ele vislumbrou como algum tipo de lei interior irrevogável, agora era também a hora da morte.
Foi preciso uma doença no corpo para perceber que o mesmo acontecia com a alma. Foi preciso romper com o efeito anestésico da rotina, do costume e do hábito. Foi preciso a iminência da morte para trazer o desejo da vida. Um velho clichê sem estética ou, pior ainda, cheio de afetação, mas carregado de verdade.
Voltando a si, deixando de lado as lembranças do hospital e suas reflexões, como se tivesse saído de um estado onírico, Luís se viu rodeado de pessoas ao longo do quarto. Já pressentindo o momento derradeiro, através da consternação das pessoas e da debilidade do próprio corpo, ele repetia a si mesmo que a vida não tinha sentido senão ela mesma, e tudo o que fizera até então fora somente manter-se vivo. Mas dizia isso sem muita convicção, como se faltasse ainda um alicerce para tais ideias. “Que seja!”, ignorou esses pensamentos e tentou se concentrar naquele momento crucial.
Como estava desenganado de qualquer esperança de cura, sentiu pena, muita pena; lastimou o fato de não ter mais tempo. E procurou consolar-se, ao menos em parte, com suas últimas palavras. De novo o clichê, aquele de, só diante da morte, ter sede de vida. Mas pouco importava agora para ele o que pareceria, aos olhos dos outros, suas ações. Tinha que ser ele mesmo pelo menos uma vez no palco que fora sua vida, jogar fora o roteiro que lhe deram, sair do personagem que era e improvisar, viver, pois a vida só é vivida quando é inventada.
Olhava para todos ao seu redor e, mais pelo traje que pelo rosto, reconheceu um sacerdote. Teve um sobressalto; afoito, fez sinal para que a esposa se aproximasse. Falou-lhe com dificuldade alguma coisa ao ouvido e lhe deu um beijo sem pressão sobre seus lábios trêmulos. Ela, que chorava quase sem interrupções desde que o marido fora diagnosticado, de repente se aprumou, pediu que todos a acompanhassem e saiu do quarto. Mas não sem antes acenar com a cabeça para o sacerdote que ela havia chamado, a quem já conhecia há muito tempo.
Ficaram alguns minutos a sós no quarto, até que o padre saiu e todos retornaram a preenchê-lo.
Foi então que as pessoas presentes, exceto sua esposa e alguns outros, se compadeceram com o que julgavam ser o delírio final de um meio-morto — o que sempre fora na vida, mesmo quando estava com o corpo saudável, mas dessa vez com a parte morta diferente—, pois, no seu último estertor, Luís gritou bem alto:
— Estou curado!