FOI O VENTO
POR: Sônia Machado
CAPÍTULO 3
DEPOIS QUE O SR. LOPES SE AFASTOU, LÍVIA FICOU ALI parada segurando o portãozinho. Ela tentava compreender porque aquele senhor idoso a havia chamado de Leonor. Estranho também fora ele ficar observando a casa por muito tempo, pois, enquanto ela descia as escadas notara que já estava lá.
Não pudera observar direito o seu rosto uma vez que a cena que se desenrolou fora muito rápida. Além disso, aquele senhor estava de chapéu, cuja aba escondia as sobrancelhas e ainda projetava uma sombra que lhe escondia os olhos, o que dificultava algum reconhecimento e até mesmo assimilar sua fisionomia.
Lívia notara, contudo, que o senhor era idoso, pois eram visíveis os sinais genéticos e cronológicos do passar dos anos nas maçãs flácidas e cheias de sulcos de seu rosto. Lívia notara também que ele se vestia bem e que entrara num carro de luxo.
—Com certeza deve ter errado de casa e me confundido com outra pessoa. — Lívia falou para si mesma tentando afastar uma sensação estranha que tomara conta de si desde que se aproximara do tal senhor e ele a chamara pelo nome da avó.
—Não, não pode ser... Meu avô está morto. — Lívia balançou a cabeça pensando no avô Vicente que ela nunca conhecera, e que, segundo seus pais, estava morto, há muitos anos, assim como sua avó Leonor.
Na verdade, ao longo de seus quase vinte e dois anos, seus pais falaram pouco de seus avós paternos. Algumas vezes Lívia teve a impressão que eles evitavam falar sobre o assunto como naquela tarde em que em que ela estava com a mãe na varanda. Por um instante ela havia pensado nos avós e quis saber como eram seus rostos. De repente se virou para a mãe que lia.
— Mamãe... Tem certeza que não tem nenhuma fotografia de meus avôs? Eu queria tanto saber como eram.
A mãe parara a leitura e ficara por instantes parada como se tivesse levado um choque. Até então Lívia nunca tinha exigido algo mais concreto com relação aos avôs. Ela ficara sem ação. Após alguns segundos, no entanto, lhe respondera.
—Não, não temos nenhuma fotografia. — E se levantou fechando o livro.
—Mas mamãe... Por que não têm? Todos têm nem que seja uma.
—Sinto muito filha... — E saiu deixando Lívia ali imaginando memórias que nunca poderia de fato ter. Para Lívia era como se faltasse algo em sua vida. Era como a folha de um livro que fora arrancada e, assim, tirada a sequência da história. Uma simples fotografia para Lívia poderia revelar uma história inteira. Ela não precisava de mais nada.
Às vezes vasculhava as gavetas do quarto dos pais, exceto uma que ficava sempre trancada. Mas ela havia tentado abri-la com um grampo, aproveitando a ausência dos pais. Não conseguira e em uma de suas tentativas fora surpreendida pela mãe.
— O que está procurando Lívia? — Sua mãe perguntara da porta.
Lívia, pega em flagrante e com rosto queimando de vergonha se justificou:
—Estava procurando alguma fotografia de meus avôs. Desculpe...
—Já disse que não temos fotografias deles. Não acredita em mim? —Sua mãe, no entanto, parecia muito perturbada como se temesse que ela descobrisse algo. Foi com esforço que a repreendeu.
—Você precisa respeitar o espaço das pessoas.
Só que Lívia desconfiava que aquela gaveta não fosse apenas um espaço de seus pais. Lá dentro tinha algo que também dizia respeito a ela. No entanto, se levantou e prometeu a si mesma não mais procurar.
Agora, ali, segurando o portãozinho e com a imagem daquele senhor na cabeça, Lívia chegara à conclusão que os pais pareciam esconder ou fugir de alguma coisa com relação aos avós. Algo dizia que sim. Embora quisesse muito entender, ela não iria tocar nesse assunto com a mãe. Ainda mais agora que ela estava doente. Enfim, sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos.
—Estou imaginando coisas... — E fechando o portãozinho saiu para a rua. Ela pretendia ir à Padaria Laika comprar o lanche da tarde para ela e sua mãe.
Na maioria das vezes Lívia comprava leite e pão de milho que sua mãe dizia adorar, embora ela desconfiasse do contrário, pois achava os tais pães sem gosto algum e ainda com aquele fubazinho salpicado por cima. Mas era leve e não incomodava o estômago da mãe que vivia enjoada por causa do tratamento de câncer. Lívia ainda agregava a ele algum valor, como manteiga, geleia, requeijão. Mas a mãe preferia puro com café e leite.
De qualquer forma, o ato de comprar o pão, a obrigação de todos os dias, tinha se tornado um prazer para Lívia. Era a oportunidade que ela tinha de sair pelas ruas e espairecer a cabeça. Muitas coisas haviam acontecido ultimamente em sua vida, como a morte do pai e a doença da mãe que exigia muitos cuidados. Ela precisara, inclusive, parar os estudos de graduação em Artes.
Agora, o simples ato de caminhar pelas ruas trazendo a sacola do lanche dava a Lívia a sensação de liberdade que precisava para renovar as forças. Ela mal completara vinte e dois anos e a vida já se encarregara de colocar muitas responsabilidades e renúncias em seus ombros. Mas jamais reclamava. Aprendera com a mãe que aceitar os fardos os tornavam mais leves.
Lívia foi descendo a rua. O vento frio de inverno a seguia brincando com folhas aqui e ali. Algumas ainda nos galhos já quase desnudos das árvores plantadas nas calçadas e que formavam um belíssimo corredor ecológico com suas copas encontrando-se no alto. Uma magnifica arquitetura de troncos, galhos e ramos que abrigava pássaros e insetos numa cidade basicamente de concreto. Outras folhas, já secas, pelo chão, o vento as levava sem rumo. Algumas ele deixava pelos bueiros e outras, deixava pelos cantos dos muros baixos e calçadas.
Foi numa dessas brincadeiras um pouco mais afoitas que o vento retirou da cabeça de Lívia a sua boina de tricô azul e foi arrastando-a pela rua afora, misturando-a às folhas secas que formavam um tapete, cujas cores iam dos tons ocres ao marrom. Lívia que caminhava com a alma também ao vento assustou-se e apressou os passos atrás de sua boina, para regatá-la sem sucesso. O vento era mais rápido sempre. O vestido azul de Lívia com flores miúdas no estampado e saia no estilo Três Marias, ondulava no seu corre-corre atrás da boina. E para completar, os cabelos castanhos claros, antes alojados sob a boina, agora livres, seguiam o curso do vento, aderindo à brincadeira, sem alternativa. Uma hilária e bela cena invernal com todas as suas nuances, incluindo o casaquinho de tricô também no tom da boina que usava
— Eita vento... — Lívia simulou estar zangada, mas um leve sorriso denunciava que ela adorava aquelas brincadeiras. O vento parecia entendê-la. E, talvez por isso, inventava cada vez mais travessuras só para ter o prazer de vê-la revirar os olhos ou sorrir.
Finalmente o vento cessou por instantes, e a boina aquietou-se finalmente junto à calçada, misturada às folhas que não conseguiram escapar da brincadeira invernal. Foi resgatada, porém, por duas mãos que ao mesmo tempo a tocaram. Uma das mãos era a de Lívia delicada e branca, e a outra, uma mão grande e morena que, ao tocar ao mesmo tempo a boina, roçou levemente os dedos de Lívia.
Entre tímida e assustada, Lívia esqueceu a boina e levantou o olhar, encontrando dois pares de olhos negros fitando-a sorridentes como se caçoassem da cena.
Tomando a iniciativa, Arthur, o moço de olhos negros, finalmente resgatou a boina em meio às folhas secas, se levantando ao mesmo tempo em que Lívia. Ele retirou algumas folhas que ficaram grudadas na malha de tricô e a entregou a Lívia que não se moveu a fitá-lo.
— A sua boina... —Disse com um sorriso marcando o canto dos lábios.
— Foi o vento... — A voz de Lívia saiu enfim, trêmula e quase apagada na justificativa que encontrou para explicar toda aquela cena.
— Sim... Foi ele... — Arthur concordou sorrindo.
Por alguns segundos ele a fitou nos olhos. Depois simplesmente colocou a boina modelo francesinha na cabeça de Lívia, a ajeitando um pouco acima de suas sobrancelhas. E para espanto ainda maior de Lívia, ele acertou as mechas de cabelo fora do lugar brincando com elas entre os dedos longos.
Diante do olhar tímido e assustado de Lívia, Arthur fez uma reverência como se estivesse diante de uma princesa e voltou a caminhar pela rua, chutando as folhas secas com seus sapatos Mocassim preto tipo solado, ao que tudo indicava, da Linha Conforto Ranster, criados especialmente para homens que gostam do estilo casual e democrático e de sempre estar confortável.
Com o coração aos saltos, Lívia finalmente saiu do transe, e virou-se para olhar Arthur, o moço alto e moreno, se afastar pela rua com as mãos nos bolsos de uma calça caqui também democrática e confortável, contrastando com um leve suéter de tricô preto sobrepondo uma camisa polo branca.
— Obrigada... — Ela conseguiu enfim dizer numa voz que mal se ouvia.
Arthur parou e olhou para trás e, com um sorriso, novamente fez outra reverência, para depois seguir sem parar e dobrar a esquina da Rua Croata.
Lívia ficou ali plantada perto da calçada onde se desenrolara a cena invernal. O coração batendo forte no peito.
CONTINUA...
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