Transmutação
I
Carla nunca esqueceu a primeira vez que seus olhos e os olhos de Liliane se encontraram. Foi a mais pura paixão à primeira vista, daquelas avassaladoras, incapaz de se explicar com palavras.
A mulher tinha um cheiro de muitas flores, mas seu vestido era a personificação do verão, aquele salto aberto, mostrava seu pé delicado de unhas cuidadosamente decoradas. A pele alva, os cabelos castanhos, a lembrança palpável guardava o som da voz hipnótica de uma sereia:
- Muito prazer, Liliane.
Carla sabia que seu coração escolheu aquela mulher para amar, e o uníssono do desejo de todos os órgãos do seu corpo, fez coro em concordância, o que Cala não sabia era como ela, sendo apenas a Carla, que sequer olhava-se no espelho, faria para merecer o amor daquela mulher.
Aproximou se e ficaram amigas, e o ar carregava o Café do centro da cidade, com o eco de suas conversas:
- Liliane: Eu gosto das metáforas implícitas nessas poesias…
- Carla: Baudelaire, Flores do Mal, já leu?...
Literatura, o tema principal, sobretudo poesia, mas o que Carla queria mesmo, era a poesia dos lábios de Liliane.
Contudo uma nuvem escura pousava no canto dos olhos de Carla e fazia chover todas as noites, as lágrimas da verdade, Liliane era Heterossexual.
II
Carla decidiu que o tempo se encarregaria do do empecilho posto entre si e seu amor, assim, ao som da voz de Liliane, ao sabor de suas risadas e ao exalar do seu perfume, a vida viu surgir entre uma e outra cena, o primeiro pelo facial, e outros no peito, uma voz mais presente, grave e encorpada, um odor delicado dar lugar à um outro, diferentemente marcante, e o corpo delgado, estreito, ficar mais encorpado.
Quando passou-se ano, Carlos tomou o lugar de Carla, agora, olhava-se no espelho, todos os dias, na esperança de encontrar a pessoa capaz de conquistar Liliane, a essência dela existia, mas o corpo faltava, e era justamente esse corpo que Carlos estava trazendo à vida.
E enquanto esperava, cercava de gentileza sua musa, com as mais doces palavras e os mais sublimes gestos, sua mão foi capaz de dar vida até mesmo a versos cheios de homenagens.
III
Mas se existe destino, provavelmente é o nome de um deus que goste de brincar de ser cruel, colocando pessoas para se esbarrar nos corredores da vida, para que se apaixonem, sem jamais provar do fruto da paixão.
Carlos estava pronto e sua investida, não poderia ter sido mais que perfeita, nunca se viu na face da terra, mais nobre cavalheiro a abordar uma dama. Contudo, as palavras de embaraço, o olhar que procurava o chão, as mãos que procuravam afagar uma a outra formaram juntos o recado que Carlos mais temia, não haveria jamais amor a ser provado, tudo ficaria para sempre idealizado, dolorosamente trancafiado no fundo de sua alma, que agora debatia-se em agonia. O golpe do deus destino foi perfeito e, provavelmente, ele olhava satisfeito de seu esconderijo.
Todavia os dia precisavam continuar passando, e a cada manhã Carlos precisava olhar-se no espelho, perguntando, inquirindo a si mesmo como um delegado implacável, o quê deu errado?
Nesse processo de dissecação do seu ideal falido, deparou-se com cores que nunca viu em seus olhos e manchas até então ocultas na pele. Ouviu também vozes que nunca havia ouvido, mas que falavam de seu âmago, e lhe contavam a história que ele nunca ouviu sobre si mesmo.
IV
O tempo passou como era de se esperar, mesmo com as dúvidas de Carlos que consultava a marcha das horas, como quem espera que o gelo derreta, e esperava, que aquele balde de água fria, tornasse em algo mais aconchegante, qual útero de mãe.
Liliane continuava bela e culta, pareceria que nada essencialmente mudou, a não ser pelo fato de que Carlos reconhecia em si mesmo um ser transmutado, forjado no fogo do platonismo, impiedosamente obrigado a olhar para si.
Carlos procurou um amor e tropeçou em outro, no processo mais doloroso de toda sua vida, alcançou a chama que queimava dentro de si.