ISIDORO – O REDIMIDO

Isidoro finalmente deixaria as ruas. Não viveria mais no improvisado bivaque sob o viaduto na avenida Antônio Carlos. Sem muito esforço conseguiu acomodar todos os seus pertences no barraco de madeira que construíra no melhor local existente na encosta do lixão da cidade. Era pouca coisa, algumas panelas de alumínio, amassadas e empretecidas, um colchão de segunda mão, duas bolsas com as roupas, a pasta de arquivo com os documentos, e o seu bem mais valioso, a bíblia sagrada e surrada. O único item “luxuoso”, uma velha poltrona com uma pequena e inamovível mancha de sangue no encosto. Aquilo não era nada, não incomodava. O móvel estava quase perfeito.

Apesar de viver naquele ambiente, não gostava nem um pouco de estar tão próximo dos seus companheiros de infortúnio. Desconhecidos que mal sabiam desenhar o nome. Mas nada disso era problema, o mal é que todos ali viviam como um bando de homens e mulheres em estado bruto, desregrados, estúpidos, sem o mínimo pudor e absolutamente avessos à religião. Aquela corja ainda tinha o desplante de debochar da pregação inspirada nos cultos que o apóstolo Zeverino, de tempos em tempos, por pura misericórdia, realizava improvisadamente naquele lugar.

Para Isidoro sua crença era santificada, intocável. Qualquer ataque, zombaria ou desprezo imposto ao objeto de sua fé, ofendia, machucava; gerava uma revolta irada. Preferia qualquer maltrato físico ou verbal contra a sua pessoa do que o menor ultraje sobre sua devoção.

Aos cinquenta e seis anos já acumulava muitas experiências boas e ruins. A vida já lhe tombara quando privilegiara as coisas mundanas em detrimento das deveres divinos. A ambição materialista cobrara seu preço. Sim, ele, um homem de fé, deixou-se cair nas garras do mundo demoníaco e profano, longe dos desígnios que o Senhor lhe preparara.

Naquela época, possuía carteira assinada, ótimo salário, moradia na vila mais prospera da cidade, esposa e filho adolescente em escola particular prestes a se formar. Tudo que um homem podia sonhar na vida. Porém, seu mundo ideal se desfez num átimo, qual queda de um frágil castelo de cartas em desafio à ventania insana.

Um belo dia tudo ruiu sobre sua cabeça. Culpa da crise, culpa do dólar nas alturas, culpa do PIB insignificante, culpa das reformas que não surtiram efeito nenhum. O fato é que Isidoro acabou sendo demitido. A empresa alegando dificuldades não lhe quitou as verbas rescisórias. Que demandasse pelos seus direitos!

Não havia mais nada a fazer. Em vez de buscar humildemente o redil, o amparo e proteção do pastor, como devem fazer as ovelhas desgarradas ele se revoltou contra tudo e todos. Vivia no vinagre, era ódio puro. Então, apesar de não ser regra, desgraça não vencida atrai desgraça a ser vencida.

Assim, para piorar, a esposa amasiou-se com outra mulher. Cismou. Quanta humilhação um homem pode tolerar? Concupiscência imperdoável aos olhos do Criador. Ficou preso por quase dois anos. Era caso justificado para se fazer justiça com as próprias mãos. A afronta não fora somente com ele, fora com o próprio Senhor. Mesmo naquele momento não sendo um discípulo fiel, a abominação de Satanás merecia reprimenda. O sangue derramado não manchou, e jamais lhe mancharia as mãos. Quase todo mundo, até a polícia em segredo, lhe deu razão.

Contudo, seu filho não lhe perdoou o ato extremado. Desafeiçoou-se do pai. E aos dezoito foi tentar a sorte em Portugal. Desde então não mais se ouviu nenhuma notícia do jovem, ninguém sabia se estava vivo ou morto.

Isidoro ficou um tempo macambúzio, triste de dá dó. Gastou suas parcas reservas com o advogado público que cobrava “por fora”. Com a crise econômica sem fim, tudo piorava a cada dia. Perdeu a casa, perdeu o carro, perdeu os bens mais valiosos e perdeu até o que não tinha, os amigos do churrasco e das peladas dos finais de semana. No entanto, sua fé restaurada o manteve vivo. Qual filho pródigo retornou compungido ao amparo da igreja pentecostal do bairro próximo.

Isidoro recolhia material para reciclagem. As pessoas dali não tinham sua resiliência; em vez de buscarem alguma alternativa digna de sustento, entregavam-se a todos os tipos de vícios asquerosos e a modos escusos de sobrevivência. Quando não morriam nas mãos dos desafetos no crime, engrossavam as estatísticas de óbitos registrados como Resistência Violenta, nos confrontos com a polícia.

Aquelas plagas eram um tormento, Sodoma e Gomorra que devoram seres humanos com requintes de perversidade. Isidoro não pertencia àquele lugar infernal. Podia sentir as mãos de luz do Senhor lhe tocando, ungindo-lhe a fronte toda vez que comparecia ao culto. Ali, haviam-lhe prometido um emprego de porteiro num afamado e cobiçado condomínio da região, com carteira assinada e tudo. A vaga teimava em não aparecer. Enquanto isso ia pelejando, levando do jeito que dava, mas nunca sem desacreditar. Isidoro se inspirava na épica e jubilosa saga de Jó.

Um dia, após vender uma grande quantidade de material, joeirado com afinco pelas ruas, recebeu a visita do pastor Zeverino que lhe abriu um largo sorriso:

- Arrume suas coisas e seus documentos irmão Isidoro, o lugar é seu! Já me acertei com o síndico, tem um dois cômodos e banheiro bem ajeitado nos fundos do prédio onde você vai poder morar!

Adolfo Kaleb
Enviado por Adolfo Kaleb em 30/01/2024
Reeditado em 08/02/2024
Código do texto: T7988354
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