O Artista - BVIW
Ela estava há meses ali no cavalete, branca e desafiadora. Raspou pacientemente as tintas que tinham ressecado na paleta. A inspiração viera, enfim: ia pintar o gato que passava as tardes empoleirado no parapeito da janela do atelier. Abriu o tubo de tinta preta, e o cheiro foi como um pequeno delírio. Voltaria a pintar! Não ia fazer esboços, pintaria direto na tela. Duas rápidas pinceladas e estavam delineadas a cabeça e o corpo. Foi acrescentando os detalhes que pareciam brotar do seu pincel sem nenhum esforço. Sentiu que aquele trabalho seria a obra da sua vida e com ele ganharia glória e notoriedade. As galerias disputariam o privilégio de exibí-lo e nos leilões alcançaria preços astronômicos. E à medida que o pincel ganhava vida própria e dirigia sua mão, a forma felina foi se transformando em fera. Os olhos pediram a púrpura do ódio que carregavam. Sem conseguir controlar os movimentos, foi pintando o animal tomando a posição de ataque. As orelhas viraram-se para trás, as garras afiaram-se e a boca escancarou-se sob o rosa da língua e o marfim dos dentes pontiagudos. Quando deu a última pincelada na carne da gengiva, soltou um grito alucinado que cortou em pedaços as paredes ao redor. Cobriu o rosto com as mãos, numa inútil atitude de defesa. Sentiu o peso quente do animal sobre o corpo que tombava. E os olhos arregalados de pavor, fecharam-se ao tocar a poça vermelha que se alargava no chão.