O menino que queria se vestir de anjo
O menino que queria se vestir de anjo
Num bairro afastado do centro comercial de Belo Horizonte, ou para ser mais preciso, num bairro localizado na periferia de bela e populosa capital mineira, vivia, há anos, um menino por nome Lucas, filho único de Dona Carlota.
Seu pai havia falecido quando Lucas era ainda muito pequeno.
Dona Carlota sustentava a casa com seu trabalho de costureira que muitas vezes se estendia até altas horas da noite. Sua vida e do pequeno Lucas era dura, pois Sr. Francisco, seu esposo, embora fosse um homem muito bom e amigo da família, nunca conseguira um emprego fixo, com carteira assinada, vivendo sempre apenas do que ganhava com trabalho esporádico. Por esta razão não deixou , ao morrer, nenhuma pensão para a família.
Moravam, mãe e filho, numa casa simples, mas sempre limpa e arrumada, assim mantida pelo capricho de Dona Carlota.
Com seus nove anos, Lucas era uma criança esperta, viva, inteligente e estudiosa, o que proporcionava muita alegria à sua mãe.
Além disso , o menino gostava de ajudar seus seme-lhantes e por isso executava sempre alguns pequenos favores aos vizinhos, como compra de pão, manteiga ou leite na padaria da esquina, ou alguma ida à quitanda do Sr. Armando , o que contribuía para que todos da vizinhança o quisessem bem ,e seus pequenos favores lhe proporcionavam o ganho ocasional de alguns “trocados”.
Dona Carlota e Lucas conversavam muito. Ela gostava de falar ao filho sempre sobre o pai e sua luta inútil para conseguir recursos para o sustento da família, através de um trabalho digno, com o amparo da lei, que lhe proporcionasse um salário estável.
Por sua vez, Lucas contava à mãe, como fora seu dia na escola, falava-lhe sobre as brincadeiras com os colegas, as notas que tirava nas provas, as aulas de ciências ...
Num dia do mês de dezembro, próximo ao início das férias escolares, ao voltar da escola, após participar de uma festa de encerramento do ano letivo, na qual foi encenada uma pequena peça sobre o nascimento do Menino Jesus, Lucas abraçou sua mãe como de costume e sentou-se calado na velha poltrona próxima à janela. Estranhando o comportamento pouco comum do filho, dona Carlota indagou-lhe a razão de seu silêncio. Lucas de início nada respondeu, porém diante da insistência da mãe, que já começara a se preocupar com o seu procedimento tão pouco comum, pois sempre chegava da escola alegre e conversador. De repente Lucas levantando-se e, diante do espanto de Dona Carlota, quase como num desabafo, perguntou-lhe aflito: “mãe por que só as crianças louras, claras e bonitas se vestem de anjo? E sem quase tomar fôlego continuou atropelando as próprias palavras : “quando eu era menor, sempre quis ser anjo nas festas da coroação de Nossa Senhora , nas procissões e nos teatrinhos da escola, mas nunca fui escolhido. Por que , mamãe^? Jesus não gosta de crianças negrinhas? É por isso que eu nunca fui chamado para me vestir de anjo?” concluiu Lucas emocionado e sem poder conter as lágrimas abraçou sua mãe.
Dona Carlota ficou atônita com a revelação do filho sempre tão alegra e risonho. Procurando aparentar calma, explicou-lhe que para Deus, como deve ser para todos os homens, o que vale, o que conta, não é a cor da pele e sim a bondade do coração. “Se você, disse ela , nunca foi escolhido para ser anjo, foi por mera obra do acaso”. E insistia Dona Carlota: “Deus, meu filho, ama igualmente todas as pessoas. Para Ele todos são iguais, pobres ou ricos, brancos ou negros, patrões ou empregados. O que torna os homens diferentes é o caráter e a intenção de seus atos. Lembre-se sempre disso, meu filho”.
Lucas ouviu atento as palavras de Dona Carlota. Após alguns instantes de silêncio mudou de assunto logo a seguir e não mais voltou a falar de seu desejo frustrado de querer se vestir de anjo.
Os dia iam passando ... Estudioso como sempre, Lucas foi vencendo com facilidade os anos de estudo. A partir da sexta série do então curso ginasial, começou a acalentar o desejo de tornar-se médico, de forma mais específica : neuro – cirurgião.
Cada dificuldade, cada obstáculo com que na vida se deparando, Lucas ultrapassou com seu esforço e dedicação. Assim foi ao enfrentar o vestibular, quando conseguiu ingressar, mesmo sem estudar em “cursinho preparatório”, numa universidade oficial, única maneira de prosseguir os estudos, já que sua mãe não teria de forma alguma condições de arcar com as despesas de uma faculdade particular.
Durante o desenrolar do curso de medicina, Lucas estudava com afinco, freqüentando as bibliotecas públicas, xerocando as páginas dos livros que seus colegas, muitas vezes, lhes emprestavam, pois sua precária situação financeira impedia que os adquirisse.
E foi assim ... até ... que numa noite festiva do início de um mês de janeiro, com grande alegria, alegria compartilhada por sua mãe, Lucas recebeu seu diploma de médico. Era a concretização de um grande sonho ; um sonho transformado em realidade.
Nova batalha havia ainda que travar: a busca da residência médica, indispensável ao exercício da profissão e depois ainda objetivava ser aprovado num concurso público para que então, com seu salário, ainda que pequeno, pudesse concretizar o desejo de abrir seu próprio consultório.
Aos poucos, com constância, Lucas conseguiu materializar seus desejos profissionais: a garantia de um emprego público e a abertura de seu consultório, onde reservava dois dias na semana para atender, sem ônus, os mais necessitados. Talvez, nessa época de sua vida, nem mais se recordasse do desejo infantil em querer se vestir de anjo!
Numa noite chuvosa de agosto, lá por volta das 2 horas quando terminando seu plantão, preparava-se para voltar para casa em busca de um justo descanso depois de um dia atribulado, deparou-se com uma maca conduzida às pressas pelos atendentes.
Dr. Lucas interessou-se em ver do que se tratava. Soube então que o paciente era uma criança, um menino que fora atropelado, tendo sofrido fratura craniana. Lembrou-se, num relance, que o Dr. Antonio Carlos, chefe da equipe de neuro-cirurgia, não havia comparecido ao seu plantão por motivo de forte gripe.
Imediatamente voltou às dependências internas do hospital, vestiu seu avental de médico, indo atender ao pequeno paciente.
O caso era grave, gravíssimo mesmo. O pequeno acidentado que soube depois chamar-se Gilson, tivera não só fratura craniana como, em conseqüência apresentava um coágulo no cérebro.
Durante aproximadamente seis horas, Lucas , debruçado na mesa de operação, dedicou-se inteira- mente na tentativa de salvar a vida do menino. Já passava das quatro horas da madrugada quando , terminada a operação, a criança foi transferida para a UTI hospitalar.
No decorrer daquela madrugada e no dia subseqüente que seria seu dia de folga no hospital, Lucas não arredou os pés da cabeceira de Gilson, procurando nos dias que se seguiram, com desvelo manter-se sempre atento ao desenrolar do quadro clínico do pequeno paciente.
Pouco a pouco, embora de forma lenta e com alternâncias muitas vezes preocupantes, Gilson foi demonstrando sinais de recuperação. Só então o Dr. Lucas reassumiu os horários integrais de atendimento em seu consultório particular.
Passados dois meses de internação, o pequeno Gilson obteve alta e cercado ainda de recomendações médicas específicas, voltou ao aconchego da família.
Dona Adelaide, mãe de Gilson, que passou grande parte de tempo à cabeceira do filho hospitalizado, pôde presenciar de perto o empenho, a abnegação e o interesse do médico na recuperação da criança.
O tempo, como sempre, não para. Já passara três meses que o menino Gilson recebera alta. Lucas lembrava-se sempre , com carinho, do garoto louro e de olhos azuis que ele, com a proteção de Deus, como sempre fazia questão de dizer, ajudara a salvar.
Numa clara e bonita tarde do mês de maio, na hora do atendimento em seu consultório, foi surpreendido com a presença de Dona Adelaide acompanhada do pequeno Gilson que, correndo em sua direção, abraçou-lhe sorridente.
Dona Adelaide após os cumprimentos protocolares, relembrando os dias terríveis que vivera e a dedicação do Dr. Lucas , pediu-lhe permissão para lhe ofertar uma lembrança.
Gilson aproximou-se de Lucas e com o auxílio da mãe, entregou-lhe um embrulho de razoável tamanho. Dona Adelaide com a voz embargada, disse ao médico : “Sou artista plástica e quis , através da minha arte, do meu trabalho, expressar-lhe todo o nosso reconhecimento”.
Dr. Lucas, confuso e mesmo surpreso, rasgou o papel do embrulho e deparou-se com um quadro – um óleo sobre tela, no qual Dona Adelaide reproduzira um anjo negro, vestido de roupas brancas como a dos médicos e asas quase douradas, com os traços fisionômicos do Dr. Lucas, tendo ao colo o pequeno Gilson, como que o protegesse do fantasma da morte, pintada de forma esmaecida, no fundo da tela.
De repente, vindo de um passado já muito distante, lá dos dias de sua infância pobre, vivida num subúrbio distante, Lucas sentiu reviver , na sua emoção, a lembrança do sonho infantil que nunca fora concretizado : vestir-se de anjo.
E agora, adulto e formado médico, via-se retratado na tela com as roupas angelicais, como sonhara vestir-se em criança.
Acompanhando o inesperado presente um bonito cartão : “O senhor é um Anjo disfarçado em médico, que Deus enviou á Terra para, em Seu nome, salvar vidas”. Assinava o cartão Adelaide e família.
Dr. Lucas emocionado, sem conseguir conter as lágrimas que brotavam insistentes de seus olhos, curvou-se beijando com imensa ternura as mãos de Dona Adelaide.
O passado se misturava ao presente no gesto de gratidão de Dona Adelaide, gesto que tocou fundo o coração de Lucas.