A Igreja
Olho novamente para a cruz luminosa formada pelo cruzamento da First com a Sunway e passo a mão pelos cabelos recentemente tingidos de castanho. Na verdade, eu gostaria de voar com as minhas asas de morcego e ver tudo lá de cima, mas quando me transformo não posso fumar, portanto prefiro ficar no chão e curtir um dos meus vícios.
Ainda não entendo como foi que eu me transformei em um sugador de sangue. Tenho procurado diligentemente essa resposta em livros e sites, lendo tudo o que diga respeito aos vampiros, mas até agora não descobri nada.
Minha memória também não está ajudando, pois tudo o que me lembro é de estar em Paris a cento e trinta metros de distância da Place de Rennes, segurando firmemente a espingarda e visando o meu alvo através da mira telescópica. Depois disso, tudo fica nebuloso. Por vezes eu acho que consegui completar a missão, outras, me vejo fitando o átrio da estação com uma expressão de incredulidade, porque o alvo se movera antes do disparo estendendo a cabeça para frente e para baixo depositando solenemente um beijo em cada uma das faces do homem à sua frente, escapando da morte certa. Durante o dia, sonho que sou aquele homem, mas não tenho uma perna e ando com uma muleta. Estranhamente, em meus sonhos, a espingarda encontra-se dentro da muleta e eu preciso abrir caminho desajeitadamente pela multidão até encontrar-me em posição de tiro.
Em dado momento, depois de disparar com a espingarda - tendo acertado ou não - vejo um guarda vindo em minha direção a fim de levar-me preso. Consigo atingi-lo, mas seu companheiro, o comissário, me acerta no peito descarregando metade do carregador de 9mm. Não lembro como reconheço o comissário, mas o fato é que eu sei de quem se trata. Ou sabia, já que não lembro de mais nada. Nesse ponto eu morro, sou enterrado e, dias depois, saio da cova já como vampiro.
Paro de forçar a mente por um momento. Digo para mim mesmo que o importante não é o meu passado, mas o futuro que se descortina diante de mim.
Agora, em Saint Peter, a um oceano de distância da França e do enigmático comissário, tendo passado por uma infinidade de países e identidades, me encontrado por vezes fatigado, por vezes eufórico, muitas e muitas vezes quase insano, vejo-me finalmente são, tranqüilo e objetivo como fora outrora, não obstante que de outrora... nada me recorde.
Esta cidade tem poucos vampiros - eu só conheço três - e, portanto, poucos territórios de caça estabelecidos. Era justamente um lugar assim que eu procurava, já que eu estava confuso demais para enfrentar as intrigas de outros sanguessugas.
O melhor território é o lugar que chamamos de Abatedouro, Angel Hills, que fica na intersecção do centro velho com o centro novo, onde o gado humano costuma se divertir.
O segundo melhor lugar para fixar residência, desde que você não seja um cidadão de bem, é Pretty View. Lugarzinho barra pesada com um monte de mortais que não fazem falta para a sociedade. Normalmente um desaparecimento lá é visto com um certo alívio pelas autoridades locais.
Quatro vampiros no meio de 1.057.069 mortais e parece que a cidade é pequena demais para alguns de nós.
Metade da cidade - que corresponde ao centro velho, o centro novo, Angel Hills, a Sunway inteirinha e tudo que existe para aqueles lados até o final da First - pertence a um vampiro que dizem ter mais de quatrocentos anos de idade chamado Wilhelm Van Dölklingen e que insiste em ser chamado de Barão, por ser esse o título que ostentava quando era um mero mortal na Prússia.
Os quatro bairros que são chamados de Pretty View - embora este seja o nome oficial de apenas um deles - estão sob a “proteção” de Anthony Talbot de quem todos pensam que eu seja Cria.
O terceiro vampiro chama-se Luc ou Lux - nunca consigo me lembrar - e não é alguém de grande importância, exceto como mensageiro, mas como eu costumo intermediar as conversações mais relevantes, a importância de Luc acaba por ser nula. A única coisa digna de nota a respeito de Luc é que ele transgride a primeira grande lei entre vampiros e humanos - “Não serás descoberto” - ou seja, ele é muito descuidado com relação às suas vítimas e, portanto, um perigo para todos nós. Todavia, de alguma maneira bizarra, Luc se encontra sob a proteção do Barão, o que significa que ninguém pode encostar um dedo no garoto sem “angariar a sua eterna inimizade”.
Hoje, uns vinte minutos depois que eu acordei, recebi um telefonema de um dos escravos mais antigos de Tonny:
- Deimos - ele me chama pelo apelido que recebi de Tonny, não sei bem porque - você já se alimentou?
- Ainda não - eu respondo.
- Tá legal. Depois que você pegar alguém, o Tonny quer que você dê uma passada na First.
- Aonde na First?
- Cara, hoje é sexta-feira.
- Ok, já entendi - respondi, sabendo que sexta-feira é o dia do tradicional racha na First, o lugar onde o Luc sempre estaria. O Tonny estava me mandando destruí-lo - E quanto ao Barão? Tonny fez algum acordo?
- O Barão foi destruído, Deimos.
Fiquei um momento pasmo com aquela notícia.
- Foi Tonny?
- Não. Gente de fora. Vamos resolver uma coisa de cada vez, ok? Acabe com Luc e depois se encontre conosco no Succubi.
Troquei-me, peguei algumas armas - uma pistola (Glock 17 - 9mm) que ficou no coldre preso à cintura com clip e dois passantes, uma escopeta (Remington 870 - calibre 12) acondicionado em estojo de couro especialmente adaptado ao assento do carona e um rifle (Kimber 82 HS - 22 Hornet) - tirei o SLR McLaren da garagem, peguei uma prostituta no meio do caminho e, depois de matá-la, vim para cá.
Dou um último trago, entro no carro e dou a partida.
Em um determinado trecho da First eu saio da via, paro, monto o rifle e fico esperando a molecada se reunir.
Não demora muito. Eles são bem barulhentos, mas razoavelmente organizados. Na verdade, precisam ser para correr por aqui - a área mais fortemente policiada de Saint Peter e antigo território do Barão.
Um pensamento me incomoda: “Foi hoje que destruíram o Barão, talvez antes que eu acordasse”. Considerando que o sol se põe por volta das seis e que eu acordei sete e meia, então houve uma hora e cinqüenta minutos para que invadissem a sua mansão - na Sunway Avenue - passassem por toda a segurança, destruíssem-no, a notícia chegasse até Tonny, depois até o seu ghoul e, finalmente, até a mim, vinte minutos depois de ter levantado do caixão. E foi alguém de fora, mais poderoso ou mais esperto ou com mais recursos do que Tonny jamais teve.
Depois da segunda corrida, Luc chega com seu Lamborghini Murciélago preto, filmado, parecendo um batmóvel. Ou ele não sabe que o Barão foi destruído ou ele é incrivelmente burro.
Eu costumava vir aqui todas as sextas, só para observá-lo correr e anotar possíveis formas de destruí-lo quando a hora chegasse. Tudo o que Luc faz é uma espécie de ritual que só faz sentido para ele: corre, ganha e se manda com alguma loira peituda que nunca mais é vista novamente. A parte irônica de tudo isso é que sempre tem alguma loira peituda para ele levar, como se a morte das colegas não lhes inspirasse nenhum tipo de cuidado. Certos humanos, eu nunca vou compreender. Existe um ponto determinado de onde ele parte e um outro ponto, onde ele pára a fim de recolher a peituda da semana.
Mesmo conhecendo a posição mais adequada para deflagrar o disparo, vou ter apenas alguns momentos com a linha de tiro livre para atingi-lo antes que a porta do carro ou a loira obstruam a visão.
O Lamborghini ganha a corrida e pára exatamente no mesmo ponto de todas as semanas, a loira peituda vem rebolando e abre a porta. O piloto está com capacete, mas seu pescoço está exposto.
Levo 2,3s para enquadrar o pequeno ponto - à 200m de distância do alvo - e efetuar o disparo. A frágil carne do pescoço oferece o mínimo de resistência necessária para que a inércia projete a gota de mercúrio - introduzida no diminuto orifício longitudinal da ponta ligeiramente abaulada do projétil, após o que fora tapada com uma gota de chumbo líquido - para frente com tal força que destrua a ponta da bala e espalhe o chumbo no exterior, como as pétalas de uma flor, destruindo completamente a garganta de Luc, decapitando-o. Deflagro mais dois disparos afim de inutilizar o braço e a perna direitas do cadáver e entro novamente no meu carro.
Quando ligo o motor ouço o grito estridente da loira e o ronco dos motores dos demais participantes do racha que estavam fazendo o mais sensato: dar o fora dali o quanto antes.
Quando chego no local, o Lamborghini está sozinho.
Com a escopeta firmemente segura na mão direita, estico a esquerda para retirar a cabeça decapitada do carro, desato as correias que prendem o capacete e contemplo a face de Luc, ainda com uma expressão surpresa no rosto.
Depois de confirmar tanto a identidade do alvo quanto sua destruição, jogo a cabeça de volta no carro, tiro uma foto, dou alguns passos para trás e disparo alguns tiros com a escopeta, municiada com cartuchos de fósforo branco - aquilo que costumam chamar de munição incendiária - afasto-me célere para escapar da explosão que se segue e, após algum tempo, dou uma olhada com o binóculo somente para certificar-me de que Luc não tenha, por milagre, sobrevivido.
Deixo o SLR McLaren na garagem e pego a pick-up Toyota FTX, que chama menos atenção, e vou para o Succubi encontrar-me com os ghouls de Tonny.
No meio do caminho tenho um pressentimento ruim e decido tirar a AMT Backup do porta-luvas e colocar no coldre de perna. É uma pistola com pouco poder de parada, mas pode dar conta de alguns escravos de sangue que porventura tentem me armar uma cilada.
Entro pelos fundos e vou direto para o escritório. Lá dentro estão quatro dos escravos mais importantes de Tonny sentados no sofá em torno de uma pequena mesa de centro cheia de bebidas, cigarros e drogas.
- Seja bem vindo, Deimos - fala Jack Wieck, o sujeito que me ligou no começo da noite - Sente-se, vamos. Estamos aqui discutindo a morte do Barão e as possíveis repercussões... e comemorando também, claro.
Retiro o pente de memória da câmera e jogo em cima da mesinha de centro.
- Luc não vai mais dar trabalho - afirmo.
- Boa Deimos - fala Jack - se algum dia o Puppet Master se aposentar, você certamente o sucederá.
Puppet Master é o apelido que deram para o Tonny por causa do seu exército de ghouls.
Todos olham na minha direção para ver o que eu tenho a dizer.
- O que está dizendo, Jack? - pergunto, falsamente indignado - Quem o irá aposentar?
- Relaxa, Deimos - esquiva-se Jack - Estou só elogiando o seu trabalho.
- Estou relaxado, Jack - digo, fazendo uma ameaça velada “você ainda não me viu nervoso”.
- Diabo, Jack - fala outro ghoul, Henrique Tarik, que comanda os esquadrões norte e leste de Pretty View - E quanto à esses caras que apagaram o Barão? Que dizer sobre eles?
- São três - manifesta-se um terceiro ghoul, responsável pela vigilância da Sunway, de nome Tyler - dois parecem machos e uma parece ser fêmea. Somente um dos machos, o qual chamamos cavalo, pôde ser captado pelas câmeras, este provavelmente seja um likanthropo. A julgar pela forma como vieram, posso quase assegurar não toleram a luz solar, com exceção do cavalo, mas isso ainda é meramente hipotético. A fêmea, a quem denominamos torre, parece necessitar de convite para entrar em propriedades particulares e pode possuir algum conhecimento em magia. Quanto ao outro macho, que recebeu a alcunha de bispo, precisa ou tem preferência em dormir em caixões e pode invadir propriedades particulares.
Ninguém pergunta a Tyler se ele tem certeza do que está nos dizendo ou como ele pôde chegar a todas aquelas conclusões e apesar disso aceitamo-las sem titubear.
- O que estão fazendo aqui? - pergunta Jack, mais para si mesmo do que para nós.
- Estão de passagem - responde Tyler - Vieram de Nova Iorque e precisam de víveres para uma longa viagem, provavelmente estão fugindo de alguma coisa medonha que lhes afugentou da Big Apple e esta seja a última parada que farão até completarem a sua jornada.
Eu não consigo deixar de pensar que talvez ele esteja somente dando palpites, mas sei por experiência própria que Tyler raramente erra em suas conclusões.
- Podemos destruí-los ou negociar com eles? - pergunta outro ghoul, o novato chamado Jason Phoenix.
- Se pudéssemos destruí-los, isso significaria que poderíamos ter destruído o Barão - responde Jack, irritado - O que não é verdade, portanto é claro que não podemos fazer nada contra eles.
- Você é um pessimista, Jack - diz uma voz vinda da porta.
É Kevin Cotrim, um rapaz que, embora tivesse uns vinte e cinco anos, aparentava ser um adolescente ainda.
- Hei, Kevin - saúda Henrique - Você não está meio atrasado não?
- É esta minha carinha de anjo - Kevin responde espirituosamente, apontando o dedo para seu rosto e mostrando a língua - Não me deixam entrar em lugares como este.
Provavelmente Kevin não foi convidado por Jack para esta pequena reunião. Por isso seu olhar surpreso - e irritado - quando o moleque apareceu. A verdade é que ninguém se sente muito à vontade diante do pequeno bruxo, exceto Henrique, que nunca conseguiu esconder direito sua queda por garotinhos.
Ao me cumprimentar, o moleque deixa um bilhete na minha mão, o qual eu coloco no bolso do paletó de maneira discreta, enquanto o loirinho trata de chamar toda a atenção para si.
- Então não podemos atacá-los - Jack retoma a palavra - Todavia, temos que nos defender.
- Errado, Jack - diz Tyler - Temos que defender Tonny. Lembre-se que para esses vampiros nós somos peças dispensáveis. Eles provavelmente não se importarão conosco contanto que consigam emboscá-lo.
Vários olhares contrariados se voltam em sua direção.
- Antes que alguém aqui pergunte porque devemos defendê-lo, quero lembrar os senhores de que sem a mercadoria de Tonny todos nós aqui nesta sala estaríamos mortos. Ademais, somente o chefe detém sua fórmula.
A mercadoria a qual Tyler se refere é o que se apelidou BLLOOD - com dois Ls mesmo - uma droga cujo componente principal ninguém conhece, exceto eu. Este componente secreto é o sangue vampírico de Anthony Talbot, um líquido tão poderoso que é capaz de regenerar a maior parte dos ferimentos e escravizar todos que dele se valem.
Aproveito que todos os olhares estão fitos em Tyler para abrir o bilhete que Kevin me deu: “Tonny quer vê-lo, AGORA”.
Espero alguns minutos, deixando o bate-boca esquentar, depois digo:
- Estou vendo que não chegaremos a lugar nenhum esta noite, portanto vou nessa. E Jack, só me ligue para coisas realmente importantes.
Vejo que Jack engole uma imprecação. Isso foi esperto.
Pego o meu carro , deixando-o em um estacionamento a alguns quarteirões do esconderijo de Tonny.
O Puppet Master sorri ao me ver e eu percebo que ele não parece preocupado com a tempestade que se aproxima.
Depois que ele me conta o seu plano eu sorrio também, devidamente impressionado.
- Leve Kevin com você - ele me recomenda.
Um pensamento me passa pela cabeça, mas eu decido esperar para ver os próximos acontecimentos.
Durante as próximas horas o nosso mundo parece vir abaixo. Os vampiros atacam todos os nossos esconderijos, promovendo uma verdadeira carnificina.
- Tyler estava errado - eu comento com Kevin - eles se importam conosco.
- Nesse passo eles chegarão até Tonny ainda esta noite - o loirinho responde - Mas antes, eles pegarão você, Deimos. As roupas que eu te dei facilitarão o serviço deles.
- E você finalmente conseguirá o que sempre desejou. - eu digo a ele.
Kevin abre um sorriso angelical e depois se manda.
O garoto está certo. Cedo ou tarde eles virão atrás de mim, portanto é melhor preparar calorosas boas vindas.
Tenho um armazém ao norte de Saint Peter, do qual ninguém - nem Tyler - têm conhecimento. É lá que eu deixo a artilharia pesada.
Enquanto dirijo pela First rumo ao galpão, sinto-me protegido pelo mar de carros ao meu redor. Afinal, a quinta das grandes leis vampíricas reza que nenhum de nós pode revelar a sua verdadeira natureza aos mortais, portanto ninguém vai usar seus dons das trevas no meio do trânsito.
Quando eu sinto o impacto de algo pesado aterrissando no meu capô e o irritante som de garras abrindo um teto solar no meu carro, meu primeiro pensamento é: “Só que nem todo mundo segue a lei”.
Com alguma dificuldade eu saco a Glock e deflagro alguns disparos com munição traçante para o alto, na expectativa de derrubar o filho de Vrikol da minha pick-up, mas a esperança é vã. Em poucos momentos o lobisomem me tira do assento, cravando suas presas no meu ombro, saltando para a “segurança” da calçada, enquanto meu carro invade a pista oposta atingindo alguns carros e provocando uma explosão cinematográfica.
O lycan salta da calçada para a parede mais próxima - numa altura de oito metros - e, tendo-me bem seguro pelas presas, continua a correr e saltar pelos telhados vizinhos, levando-me cativo até os seus comparsas.
O líder do grupo, que me parece ser da mesma estirpe do Barão, está sentado em uma poltrona e faz um sinal para que o lobo me solte.
- Obedeça-me e viverá - ele promete a mim.
O lobisomem atrás de mim rosna como se dissesse: “Desobedece vai”.
Em pé, ao lado da poltrona, está a bruxa de quem Tyler nos falou. Ela me olha com arrogante desdém.
- Não vou dizer onde está o meu mestre - declaro brava e estupidamente.
- Não é preciso - o vampiro retruca - meu amigo lobo já sabe onde ele está.
- Como isso é possível? - pergunto espantado.
- O fedor dele impregna as suas roupas - ele responde arrogantemente.
Gargalho, procurando ser o menos canastrão possível:
- Jamais o apanharão. Ele é forte demais para vocês.
Enquanto me gabo do poder alheio, o lobisomem retorna a sua forma humana e eu ouço a sua voz pela primeira vez:
- Ele está parcialmente correto. - o homem fala com um linguajar bastante erudito para uma fera assassina - Teremos que atacá-lo com todas as nossas forças, se queremos ter alguma chance.
- É tão forte assim? - pergunta a bruxa.
- O odor é antigo - o homem-lobo responde - pelo menos seis séculos.
Pela primeira vez, sinto que o plano irá falhar.
- Já enfrentamos perigos maiores - retruca o líder.
Oh, merda! Espero que Kevin tenha previsto isso.
- De qualquer forma, não precisaremos mais deste filhote - o lobisomem diz, apontando para mim.
Dou uma risadinha nervosa.
- V-vocês acham que podem com meu mestre? É sério que destruíram seres muito mais antigos e poderosos? - eu indago, com um brilho de esperança no olhar.
- Vejo que ele o maltrata - diz a bruxa.
- N-não é verdade - eu respondo humildemente - ele até me trata bem, mas não sou homem de ficar sendo capacho de outro homem.
Todos eles dão um sorriso de aprovação. Eu estava certo ao pensar que eles são todos insubordinados.
- O que está querendo nos dizer? - pergunta a bruxa, percebendo a minha hesitação.
- Quero ser alguém nesta cidade, entendem? - dou um certo tom sonhador à voz - Mas isso não é possível com aquele monstro a me comandar. Embora ele tenha me salvado a vida, é preciso que meu ex-mestre seja destruído para que tudo possa correr a meu favor. Vocês podem pensar que sou um traidor ingrato, mas não é assim que as coisas funcionam.
- Guarde o seu discurso - retruca o líder - Certamente esse seu antigo mestre não passará desta noite. Todavia, se te deixarmos existir, você estará governando debaixo da nossa proteção.
- Ele parece não gostar da idéia - fala a bruxa ao ver a expressão do meu rosto.
- Então que morra - responde o lobo.
Reúno toda a minha força de vontade para encará-los sem vacilar, como a lhes dizer: “Prefiro morrer em pé do que tornar a viver de joelhos”.
- Garoto de fibra - observa a bruxa.
- Será um prazer quebrar essa determinação - diz o líder.
Kevin estava correto. O vampiro-mestre tem dominado a bruxa e o lobo, tornando-os seus escravos, portanto ele não resiste a um desafio como o que eu acabo de lançar. Suas últimas palavras demonstram que pretende me deixar viver, somente para esmagar a minha rebeldia. Agora devo jogar o jogo com cautela, se eu não quiser ser destruído por mãos muito mais impiedosas, mãos que, segundo acabo de saber, têm mais de seis séculos de existência.
Assim, eles partem na captura de meu “mestre”, me deixando a sós para pensar no que o futuro me reserva.
Nunca mais os vejo novamente.
Espero que uma semana se passe antes de visitar o Succubi novamente. Quando chego lá, encontro Kevin já transformado em vampiro.
- Então, você conseguiu finalmente - declaro.
- Sim... - ele responde, acrescentando - irmão.
Como eu disse, todos pensam que eu sou Cria de Tonny.
- Sempre pensei que se ele fosse transformar alguém, seria Tyler - eu digo.
Kevin dá uma risadinha e diz:
- Tyler é esperto demais para o seu próprio bem. Que vampiro desejaria transformar alguém que algum dia poderia suplantá-lo?
Eu sorrio também e retruco:
- Suponho que este não seja o seu caso.
- Pelo menos - ele diz - é o que Tonny acha.
- Essa é uma das poucas vezes que eu discordo dele, sabe? - eu confesso - Acho que você é esperto demais para o seu próprio bem.
- Por que diz isso? - Kevin pergunta, ainda com aquele sorriso de moça no rosto.
- Como você poderia saber que aquela conversa fiada que me fez jogar em cima dos três funcionaria? Você conhece as pessoas bem demais, Kevin.
Kevin ri de novo e me diz:
- Você está me bajulando, Deimos.
Fico sério de repente e pergunto:
- O que você acha que aconteceu com eles?
Kevin faz uma cara estranha quando eu digo isso, como se tivesse um arrepio.
- Como podemos saber? Nenhum vampiro jamais voltou de lá com vida. Por isso que Tonny jamais fez daquele lugar o seu território.
- Mas você esteve lá, Kevin - eu digo - Como conseguiu sobreviver?
- Vai ver a coisa só ataca vampiros e não ghouls, não sei ao certo. O que sei foi que eu nem cheguei perto da Igreja, só matei um dos devotos quando ele estava à vários quarteirões de Lá, peguei a roupa dele e me mandei sem olhar para trás.
- Existem mais coisas entre o céu e a terra do que pode sonhar a nossa vã filosofia - eu digo, citando incorretamente Hamlet.
- Não só a nossa filosofia, irmão, mas a nossa imaginação.
Ainda penso nisso momentos antes de me enfiar no meu caixão. O que diabos terá acontecido com aqueles três poderosos vampiros quando entraram no território proibido? Certamente eu saberia se eles me compelissem a ir consigo e, certamente, eu desapareceria junto com eles.
Tonny acabou ficando com Saint Peter inteira para si, exceto o território onde está a Igreja. Ele venceu explorando o único ponto fraco dos invasores: o fato deles não conhecerem Saint Peter e suas lendas. Somente assim ele pôde convencê-los a ignorar um poder aparentemente menor, o dele, em prol de um poder maior, a Coisa que mora na Igreja - que eu descobri ter pelo menos seis séculos. Claro que eu fiz a minha parte, levando-os a acreditar que eu servia à Coisa da Igreja, mas o plano em si, foi concebido por Tonny e sua mais recente Cria, Kevin.
Não vejo a hora de partir para Nova Iorque. As coisas estão ficando agitadas demais por aqui.