O espelho
Eu sempre tive problemas com amor-próprio. Minha terapeuta vivia me dizendo que, se eu me amasse mais, tudo ficaria melhor. Não só o amor era o problema; eu também não acreditava em mim, não tinha autoconfiança. Pensava que nunca seria capaz de executar coisa nenhuma com maestria. Um dia, decidi dar um basta em tudo isso! Sentei-me frente ao espelho, pronto para me sondar e reforcei a mim mesmo que só sairia dali quando tudo estivesse resolvido. No início, foi extremamente difícil encarar a minha própria imagem; eu sentia uma ojeriza inexplicável. Para o meu azar, as horas foram passando, e tudo parecia piorar. A vergonha, a ansiedade, o medo… mas, eu precisava continuar.
Até que aos poucos, finalmente comecei a sentir-me mais acomodado com a situação. Fui notando em meu semblante refletido, pequenas particularidades que, no dia a dia, não me saltavam à vista. Os detalhes iam surgindo, pouco a pouco, no rosto, em todo o corpo, na personalidade. Já haviam se passado 6 horas desde que me prostrara diante do espelho. Naquela altura, eu não tinha mais medo de perceber em mim uma novidade que fosse terrível; tudo fora revelado. E o que havia de feio foi se tornando belo, devagar.
Ao fim de um período de 12 horas, eu estava curado! Eu sentia o amor-próprio correndo nas minhas veias; era tudo o que eu queria, finalmente! Mas o experimento tinha sido tão gratificante até ali, que continuei parado me observando. As horas continuaram a fluir, até que um dia inteiro passou. Mas eu não sentia o tempo passar. Eu ficava cada vez mais maravilhado comigo mesmo ao passo que avançavam-se os minutos. Como era boa aquela sensação, excluía qualquer necessidade externa. Eu não conseguia mais parar de olhar, de me apreciar em tudo, cada minúcia do meu corpo. Como eu era atraente, inteligente, viril. Eu me tornei tudo o que eu sempre quis apenas me observando com cautela. O amor por mim era intenso, tão intenso que eu não queria finalizar o experimento; eu não podia! Pra que sair dali? Por que parar de me encarar se eu tinha tudo o que eu precisava em mim, bem ali? Eu me tornara capaz de tudo! Eu podia fazer tudo! Só não conseguia parar de me apreciar. Escutei algumas batidas na porta de casa, mas não fui ver quem era; não me interessava. Depois do quinto dia de apreciação frente ao meu reflexo no espelho, tive a sensação de ser um anjo, pleno, divino, de natureza inigualável! Grandioso, subindo aos céus como se estivesse a ser arrebatado pelo próprio Deus em sua carruagem dourada. Ao início do sexto dia, a polícia arrombou a minha porta. Fui encontrado deitado no chão, rodeado de urina e fezes, desnutrido, sem vida. Mas o espelho continuava ali, refletindo a minha existência sublime, como única testemunha do meu amor.