A Véa do Fogo

A “Véa do Fogo” faz parte da galeria dos exóticos de Picos que conhecemos a partir dos anos sessenta.

A história das personagens esdrúxulas da região de Picos sempre termina com a morte dos personagens, isso não é nenhum artifício literário, é apenas e simplesmente reflexo de um fato social brasileiro - o reconhecimento e a homenagem somente a pós a morte.

Quem sabe, exatamente, o nome verdadeira da "Véa do Fogo"? Talvez Diassis, pra quem ela com mais de cem anos fez uma colcha de retalhos e lhe deu de presente. Talvez se chamasse Francisca, pois atendia pelo nome de Dona Chica ou quem sabe, Francisca do Nascimento. No tempo da escravidão, os patrões é que davam nome aos escravos nascidos na casa. Para não vinculá-los a algum laço familiar, davam-lhes os nomes, Nascimento, Santos, e outros. Do mesmo modo que nos Estados Unidos ocorria aos Thompsons e Jacksons. Mas o apelido, “Velha do Fogo”, nem os íntimos podiam falar.

Dona Francisca era de cor negra, filha de escravo e escrava até os doze anos de idade. Quando se perguntavam quantos anos ela tinha, respondia de forma enigmática:

- Não sei quantos anos tenho, mas no ano dos três oitos eu tinha doze anos. Referia-se à Lei Áurea de 1888 e à sua libertação aos doze anos de idade.

Seu apelido remetia ao próprio modo com que se apresentava. Não pedia esmolas, mas qualquer pessoa que a conhecesse, sabia de suas necessidades e já lhe estendia a mão com uma moeda. Como forma de agradecimento, ela dançava e cantava alguma música em uma língua desconhecida, pingando fogo e falando de sua vontade de casar-se. Acredita-se que nunca se casou, porque jamais falou de algum falecido marido, mas falar em arranjar marido, era o assunto que mais lhe agradava.

Dava muita atenção quando abordada por um conhecido ou mesmo estranho, mas quem a chamasse de “Velha do Fogo” tinha que se afastar do alcance de sua bengala, senão o cacete comia, nas pernas no lombo... onde ela pudesse acertar uma bengalada...

A Velha do Fogo viajava a pé de uma cidade a outra, com um pano amarrado na cabeça, em forma de manto, e, vestida com roupas que iam do pescoço ao tornozelo. Muito limpa e cheirosa, a velha não tinha cheiro de perfume de frasco, mas apenas e simplesmente de limpeza, de sabão de oiticica ou coco. Morreu na década de oitenta, com aproximadamente 104 anos, mas não se sabe com certeza se morreu. Saiu um comentário que a onça havia comido a “Velha do Fogo!” Comer o quê? O corpo, supostamente dela, estava intacto, nem fera e nem abutre ousou banquetear-se, nem mesmo os vermes. Foi encontrado um corpo, só o couro e o osso, debaixo de uma árvore entre Picos e Ipiranga no Piauí. Provavelmente da “Velha do Fogo”, porque há muito tempo não carregava o peso de carne nas costas. Transportava sobre suas pernas cambotas apenas uma pele escura que lhe revestia o canastro, quase sem nenhuma carne. Não havia carne para dar aos vermes, portanto, não havia cadáver, uma vez que cadáver significa carne dada aos vermes.

A velha sabia de reza braba. Cobra e nenhum outro animal a atingiria. Morreu de fome ou sede, as duas coisas juntas ou nenhuma delas. Morreu com peso da idade, se é que morreu ou ainda continua pingando fogo por aí afora.