FELIZ NATAL, SENHORAS E SENHORES

Quem sou eu para julgar?Se pudéssemos expôr as misérias das pessoas, os erros, os crimes, encontraríamos a mais absoluta penúria, a verdadeira indignidade.Por sorte, cada um de nós esconde bem fundo a derrota que carrega secretamente, mantendo-a o mais longe possível do olhar dos outros.

David Trueba in „Saber Perder“

A partir de uma determinada altura, sabia, perdia-se o pé.

Pedro entrou na pastelaria apinhada e foi saudado pelo gerente com um radar de atenção infalível.

Mas uma mulherzinha muito parecida com uma perua com crista e tudo, passou-lhe à frente e berrou com a voz estridente:

- Ai, Senhor Hernani, este ano não pôs os chavelhos de rena que lhe ficam tão bem!

- Pois, Dona Mécia,esses também não lhe ficavam nada mal.

Um coro de rapazes ao balcão mugiu com um ar sério.Todos fizeram um ar grave e ninguém se riu.

- Sô Pedro veio buscar os sonhos e a torta de laranja?

-Exatamente.Já estarão prontos?

-Vou ver.É só um momento!

As pessoas entravam e saíam.Duas jovens adiantaram-se, não respeitando a fila:

- Podemos ir ao banheiro?Estamos tão aflitas.

- Hoje, filhas, é o dia da entrega das encomendas – e, imitou o sotaque – não há banheiro para ninguém. – e desengonçou-se todo num jeito nervoso e irreverente.

Um actor de telenovelas entrou, despenteado, com a barba por fazer e sorriu.

Mas o burborinho abafou aquela cena com o ruído dos pires, das chávenas, das colheres e do bater dos pratos a sobreporem-se a tudo.

- Tenham paciência.Que façam pelas pernas abaixo.Não posso deixá-las passar com este trânsito, lá para baixo, para a cave

Pedro pensou em visão panorâmica no seu pequeno mundo de ultimamente e sentiu a cabeça à roda,enquanto Hernani, o apresentador daquele circo montado à la minute procurava, em vão o número da encomenda.

A perua não se calava e desta vez falava para a geral, na esperança de que alguém metesse conversa.

- Ai, eu gosto tanto desta Quadra.Eu gosto tanto do Natal! – e acenava com a cabeça ao mesmo tempo que se ria e se babava discretamente, a tasquinhar um croquete comprido.

Pedro partia a duzentos à hora pelo deserto da sua imaginação nessa cidade das mulheres em que habitava como no filme de Fellini e em que era suposto servir e prover às mais primitivas necessidades do clã feminino.

Já não descortinava bem no meio da confusão quem era e para onde ia.

Havia a mulher na vida real que não aguentava esperar um minuto que fosse e desatava a soprar e a revirar os olhos que nem uma fera, a prestimosa serviçal que tinha uma sentença para tudo num grande festival de ignorância exibicionista, a veneranda parente de que era responsável e que se abria como uma ostra a qualquer amiga parva que a visitasse no Lar mas que o atormentava com o seu permanente ar desafiador, rebelde e insubmisso.

- Se agora não os encontra, senhor Hernani, posso cá voltar mais tarde.Sem problema.

-Não , senhor.Macacos me mordam se não vou encontrar as malditas caixas.Eu já as vi!Confundi o número.Era um nove e eu andava a ver do seis.

Um homem pequeno cumprimentou discretamente os assistentes mas ninguém lhe prestou atenção:

- Feliz Natal!

Uma súbita altercação estalou entre a opulenta Lídia, a esbelta empregada de um metro e oitenta e uma cliente com ar de senhoreca, feita a murro mas de reduzida estatura:

- Estão crus.Estes pasteis estão crus!

- Desculpe mas não estão nada!

- Você está a desmentir-me?Não lhe admito!

Na verdade, as coisas não estavam bem em nenhum lado:os políticos mordiam-se descaradamente, as jornalistas ressabiadas com os escândalos anteriores caluniavam os famosos sem rei nem roque, havia focos de guerra impiedosa em vários lugares do Mundo e o Santo Padre bufava de dores nos joanetes, já muito acabado.

O homem discreto ainda protestou perante o crescente da exaltação:

- Olhem o espírito, carago!

- Nem o Espírito Santo lhes vale, hoje – ripostou um outro cliente com ar anafado de construtor civil e desatou a tossir e a espirrar alternadamente.

- Senhor Pedro, um momento que eu tenho que pôr ordem nisto! – e gritou para as duas – Chega!

- Ai, por amor de Deus, Senhor Hernani, não pronuncie esse nome!É uma blasfémia! – bradou uma cliente altiva e seráfica.

- Nunca! – corroborou um homem inócuo.

A selva.A chita come a perdiz que pica a cobra que devora o pássaro numa maré ensanguentada e infindável.

Sandro, o simpático e sorridente empregado da casa aumenta o som da televisão onde um grupo de crianças já fora de prazo, entoa um hino, muito desafinadas.

- Multibanco?

- Sim, sim, Sr Hernani.Por favor!

No meio do turbilhão paga, segura o saco, tenta escapulir-se e embate no actor.

- Com mais acção aqui do que nas telenovelas que o senhor faz.

- Parece que sim.

E arrisca um elogio, um gesto a tentar o simpático.

- Faz e aliás muito bem.Se me permite,um excelente actor.

- Obrigado.Feliz Natal!

- Feliz Natal!

E conseguiu finalmente tanspôr a porta. O Sol brilhava.Ao menos, isso.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 01/01/2024
Código do texto: T7966538
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.