Belarmino, caçador
Traidor e repulsivo para muitos, ele era parte da estrutura daquela sociedade oitocentista. Belarmino, capitão do mato, não tinha qualquer problema em atuar como caçador, e não dava a mínima atenção para o desprezo daqueles que o utilizavam e se beneficiavam dos seus serviços.
- Você é muito franzino para exercer essa profissão!
- Tenho o chicote e o laço. Trago de volta qualquer negro fugido.
Sua profissão era caçar, prender e devolver o escravo fugido ao seu legítimo dono, e receber a recompensa.
Ele próprio ex-escravo, ficou sem comida desde o dia em que recebeu a alforria do seu senhor, que estava à morte, e que também tinha sido caçador, capitão do mato dos mais competentes.
No início da vida de alforriado fazia biscates oportunos em troca de uma fruta, ou mesmo de um pedaço de pão! Passava tanta fome que chegou a cogitar a dispensa de seu certificado de negro livre e se apresentar nalguma fazenda para trabalhar de graça novamente! Pelo menos teria um pouco de angu para comer!
Foi quando se lembrou de seu antigo patrão que ele teve a ideia de se tornar um capitão do mato!
- Você é negro liberto?
- Sim, senhor, liberto.
- E não tem vergonha de sair caçando seus iguais por aí?
- Não, não tenho. Preciso comer, e caçar negros é algo que eu sei fazer.
Não, não sabia fazer! Não tinha caçado nenhum ainda, mas, conhecia todas as manhas da profissão, todos os caminhos que os fujões costumavam percorrer!
As características do fugido foram-lhe dadas e em três dias Belarmino trouxe-o de volta para os trabalhos forçados. A notícia se espalhou entre os senhores de escravos.
- Bom dia, capitão, está saindo para mais um dia de trabalho?
- Tenho dois para capturar, hoje.
- Desejo-lhe boa sorte. Depois passe por aqui para a gente tomar um gole de aguardente.
Amados, desprezados e odiados, tudo ao mesmo tempo, os capitães do mato tinham alguma importância na manutenção da ordem naquela sociedade onde um homem era patrimônio de outro homem mais poderoso.
- Como pode existir uma coisa dessas? Um ex-escravo que já foi colocado no tronco agora sai por aí, caçando escravos fugidos!
A despeito de todas as restrições morais, tinha uma profissão amparada por lei, como era amparada a própria escravidão.
- Vinte chibatadas nesse negro safado.
- Eu sou alforriado, senhor.
- Ladrão também! Primeiro vai apanhar, depois será entregue às autoridades.
Belarmino, com muito serviço prestado aos senhores de escravos, envelheceu, e resolveu simplificar seu trabalho. Começou a sequestrar e esconder um suposto fujão, esperava o alarme da fuga, apresentava-o e recolhia seu prêmio. Fez isso algumas vezes, na última foi pego em flagrante e agora sofre chibatadas no lombo enquanto todos os negros em volta riem com gosto.
Peaia Grande, SP, 19/12/23