Olhos de Cigana
Felipe era um homem feliz e realizado naquilo que havia dedicado por uma década e meia para construir: seu próprio consultório odontológico. Embora sua vida profissional fosse bem satisfatória, a emocional não estava lá essas coisas. Havia uma ruptura sofrida recentemente e o vazio daqui rotina o incomodava. Ele não sentia mais nada pela pessoa, mas por preguiça de se dispor a conhecer novas histórias, cometeu o pior erro de todos. Após um dia exaustivo no consultório, tendo realizado algumas extrações, limpezas e canais, Felipe desejava apenas sair para jantar, tomar um bom vinho e ouvir qualquer história que não fosse sobre dentes. Apesar de amar muito sua profissão, tudo o que precisava era de oxigenar seu cérebro com novos ares. Ligou para Roberta, sua ex-namorada, buscando saber se toparia sair para jantar no restaurante de frutos do mar que havia inaugurado na Lagoa, com uma vista esplêndida. E ainda que seu interior todo bem decorado transmitisse toda aquela peculiaridade acolhedora, o terraço era igualmente encantador. Com muito menos, porém com tudo mais…
A voz do outro lado da linha atendeu com um tom de voz ríspido e reclamão. Ela até aceitou, pontuando a imprevisibilidade do convite e o quanto teria que mudar sua rotina após ele informar o horário. A reclamação talvez fosse uma forma de se mostrar resistente, então ela concordou apesar de tudo, e assim encerraram a ligação.
Felipe pensou melhor… sabia que não podia se prestar a este papel e retornou minutos depois cancelando o jantar. Deu uma desculpa esfarrapada que uma cirurgia de emergência precisaria ser iniciada.
Assim que desligou, pendurou seu jaleco, apagou a luz de seu escritório e trancou a porta. Saiu em direção ao restaurante, largando de mão os estresse do trabalho, as preocupações e responsabilidades afetivas, e mesmo agindo da forma mais irresponsável, egoísta e imoral possível, pela primeira vez em meses, ele lembrou de si. Após colocar o cinto e girar a chave na ignição, um sorriso genuíno lhe brotara na face.
Chegando na rua do Restaurante, ele conseguiu sem preocupação um lugar para estacionar. Estava cedo, não passava das 19:30, mas janta cedo lhe daria o tempo necessário para uma boa caminhada depois.
Assim que entrou pela portal de quase dois metros de largura e 3 de altura, Felipe se deu conta que o ambiente era mais elegante e fino do que havia imaginado. Uma música tocando em um volume bem baixinho, chamava atenção aos seus ouvidos. Tinha quase certeza de ser "At last", mas não era da Etta James, era um cover, esplêndido, mas um cover.
O garçom que o recebeu, lhe acompanhou até uma mesa no segundo andar. O local era descoberto e permitia uma visão espetacular da Lagoa. Todo aquele céu negro vestia a cidade com um lençol de estrelas. Numa mesa destacada, próximo ao parapeito do terraço, duas amigas bebiam cada, uma grande e bela caneca de chopp e ao que tudo indicava, a cestinha em cima da mesa, provavelmente seria uma porção de bolinhos de bacalhau ou pastéis de camarão. Ele as observava enquanto olhava o cardápio e quando finalmente fez seu pedido, observou ao redor outras duas mesas ocupadas. Todo aquele terraço com mais de uma dúzia de mesas, com apenas quatro ocupadas.
Enquanto Felipe aguardava seu Salmão com purê de batata baroa, pediu uma garrafa de Cabernet e tomou uma taça do vinho, fantasiando o que quer que as meninas estivessem conversando em meio às risadas. As variáveis eram infinitas: Reclamações sobre seus parceiros, colegas de trabalho, familiares e até mesmo, sobre os outros amigos.
Um celular toca.
Era o da loira serelepe.
Não demorou muito e Felipe conseguiu ouvir: “tudo bem, estou indo!”
— Amiga, eles chegaram! Obrigada, amanhã a gente se fala…
“Ok, o que será da outra? Por que não a acompanhou?” — pensava Felipe.
Tomou uma estranha coragem e foi até ela. Estava entediado e queria cometer atos questionáveis.
— Oi, boa noite… Tudo bem?
— Oi… Boa… Eu te conheço? — Ela foi direta.
— É… eu sei, eu também não a conheço, mas eu fiz uma aposta com um cara, que eu teria sim coragem de vir aqui pelo menos saber seu nome.
— Que? Quando você fez isso e com quem?
— Então, comigo mesmo, 5 minutos atrás.
— Tá, e como posso te ajudar? Ela perguntou sorrindo.
— O seu nome já seria de grande importância…
— Digamos que meu nome seja Vanessa.
— Sem problemas “suposta Vanessa”, gostaria de me acompanhar no jantar?
— Olha… você é bem estranho, sabia?
Felipe olhou no fundo dos olhos dela e disse quase pausadamente.
— É a minha primeira vez neste restaurante e até agora estou adorando a experiência.
— Pode deixar que se eu esbarrar com o dono, farei questão de informá-lo! — Ela o interrompeu soltando a fala brincalhona, com um sorriso acolhedor e divertido.
— Que tal incluir no feedback, que você me fez companhia, me contou suas histórias divertidas e hediondas, proporcionando a este estranho, as melhores memórias possíveis, no primeiro jantar da vida dele, neste restaurante?
— Cara, isso é sério?
— Tenho certeza que ele ainda vai te garantir um cartão fidelidade! E aí? Topa?
Vanessa o encarou duvidando daquela audácia. Aquilo era quase um roteiro de pegadinha, mas decidiu fazer parte da brincadeira e aceitou a proposta segurando o sorriso no canto da boca. Havia algo de encantador e estranho na atitude e sutileza daquele homem.
Enquanto ele puxava a cadeira pra ela se sentar, apresentou-se.
— A propósito, me chamo Felipe.
— Eu tô com medo de dizer isso, mas prazer em conhecê-lo, Felipe.
— Quer comer algo?
— Agradeço… Mas aceito o vinho.
— Campeão! — ele estendeu a mão para chamar o garçom. Se divertiu vendo a cara de desprezo do mesmo ao ser chamado de “Campeão”. — Por favor, poderia me trazer mais uma taça? Obrigado…
Assim que o garçom saiu, Felipe cochichou.
— Meus campeões ficarão putos comigo, por ter dado um título tão elevado pra este rapaz…
— Égua… Se você o chamasse de padrinho, eu mesma te repreenderia!
Eles riram.
— Você é de Belém?
— O “Égua” me entregou, neh?!
— Com certeza… Tá aqui a passeio? Veio morar de vez?
— Não só vim a passeio, como meu voo de volta é amanhã a tarde, tô relaxando um pouco.
— Puts, acho que não vai conseguir o cartão fidelidade ein…
— Mas eu tenho certeza que ganhei uma história pra contar.
— Boa? — Perguntou Felipe sorridente e com as sobrancelhas arqueadas.
— Muito cedo pra saber, não acha?
O garçom havia trazido a taça e após servir, eles se prepararam para brindar:
— Brindemos ao desconhecido?
— Gostei... — declarou Vanessa
“Ao desconhecido” brindaram em uníssono.
— Então… Quem é a Vanessa quando não está viajando?
— Uma advogada e uma escritora. — Ela sorriu demonstrando um orgulho e uma satisfação plena em se anunciar assim.
— Então esse é aquele momento onde a noite precisa ser boa pra virar uma história, pois caso contrário, posso aguardar uma intimação?
— Depende… Tu faz o que?
— Sou dentista. — Felipe encheu a boca, declarando sua satisfação.
— Aí é sacanagem. — Vanessa entoou um tom de voz melancólico e penoso. — Eu não vou processar fudi…
Os olhos de Felipe se arregalaram, enquanto ela caiu na gargalhada se engasgando.
— Cara, calma aí que vou recolher minha insignificância, tá?!
— Tu tá brincando de Chandler Bing e eu não falei nada.
— E você pra competir incorporou o Léo Lins. Aí fica complicado.
Os olhos dos dois sorriam enquanto flertavam. Os assuntos nem eram tão relevantes. Talvez até fosse, mas a troca de olhares e como um encarava os lábios do outro, revelava uma vontade nas expressões faciais de morar naquele momento…
Havia no olhar de Vanessa uma intensidade vibrante, que fazia Felipe senti-la lhe adentrar a alma. Esse olhar era isento de malícia e sensualidade, e justamente isso, era o que tornava aquele confronto ocular ainda mais excitante.
Depois de uns goles e um pouco mais de conversa, uma proposta foi feita e Felipe rapidamente pensou que deveria deixar a nota de 50 que tinha separada na carteira, no bolso do DJ da caixinha de som ambiente do restaurante. Afinal que timing abençoado pro cara colocar “Strangers in the night” pra tocar, no momento exato em ele havia convidado-a para irem até o parapeito de vidro, apreciar mais do breu da noite. Caminharam em silêncio e numa espécie de brincadeira, ele estendeu a mão, na tentativa de tirá-la pra dançar e ela se dispôs sorridente a ideia.
E no bailar dos passos ao som de Sinatra, Felipe e Vanessa valsaram por aquele pequeno espaço vago, até que sorrindo, beijaram-se.
Um belo casal de estranhos na noite...