Desculpe a intromissão
Minha amiga, companheira de toda uma vida faleceu. Vivemos juntas nossa adolescência e vida adulta. Casamos com irmãos e a sua filha tornou-se também uma das minhas amigas de encontro de gerações. Vânia resolver levar as cinzas da mãe para Florianópolis, joga-las ao mar, na praia que ela gostava muito de ir.
– Oi tia. Eu e papai resolvemos fazer uma cerimônia para jogar as cinzas da mamãe em Floripa. Vamos eu, papai, tio Décio, João e gostaria muito que você estivesse presente. Convidei quem eu achei que a mamãe estaria feliz ao ver nesta cerimônia.
Foi uma viagem diferente. Cinco pessoas conectadas pela tristeza. Tive a sensação que Lara, mesmo morta, agregava os amigos como sempre fazia. E por isto mesmo teria que ser uma festa. Não falamos de tristeza. Foi um velório de três dias em que interagimos e fizemos o que Lara sempre gostou de fazer, cozinhamos, bebemos e comemoramos juntos. Algumas vezes, pensei que ouvia a sua risada. Nas conversas sabíamos o que iria dizer e como ela iria reagir. Lara esteve ali conosco e participou da sua festa de despedida que foi em grande estilo, bem do seu jeitinho.
Na primeira noite, era o aniversário de João. Fomos comemorar em um bar de comida mexicana. Ambiente alegre com muita música e muita gente. Eu pedi ao garçom uma taça grande de margarita e disse rindo:
— Não enche a taça de gelo para colocar menos tequila achando que por ser uma senhora e não consigo beber. Eu sou uma senhora, mas sei beber como um senhor.
A senhora bebeu tudo sozinha, ficou bêbada. Derramou um copo na mesa e o mesmo garçom limpou. Ele me olhava e dizia;
— Ah senhora! Você me disse que sabia beber. Foi você senhora?
O garçom virou amigo e “senhora” virou meu apelido. A senhora procurou assunto com os argentinos da mesa ao lado que acabaram sentando na nossa. Rimos e divertimos até a madrugada com a certeza de estarmos compartilhando este momento com Lara.
No outro dia cedo passeamos pelas praias de Floripa. Revisitei lugares que fomos da outra vez que estivemos ali, eu, Lara, Tião e Vânia. À noite, decidimos fazer um jantar no apartamento. Muitas garrafas de vinho foram consumidas e quando acabaram, saímos os quatro para a rua, a pé, procurando um lugar para comprar mais. Fomos andando, de taça na mão pela avenida. Era de madrugada. Vimos umas pessoas sentadas na beira da lagoa e Décio resolveu ir até eles perguntar se sabiam onde poderíamos comprar vinho.
– Desculpe a intromissão, mas por acaso vocês não têm ou sabem onde podemos comprar um beck a esta hora?
Todos caíram na gargalhada, inclusive nós, que além de achar engraçado, ficamos surpresos com a pergunta. Depois de muito rir, eles indicaram onde acharíamos o vinho. Andamos mais um pouco, compramos o vinho, voltamos para casa e continuamos com a farra. A expressão “desculpe a intromissão” combinado com a “senhora” virou gíria, uma espécie de código só nosso e uma forma de lembrar aqueles momentos tão difíceis e ao mesmo tempo tão prazerosos.
No último dia fizemos a cerimônia de deposição das cinzas de Lara. Saímos passeando pela praia. Paramos no restaurante que era o preferido de Lara. O dia estava chuvoso e frio. Combinamos ir todos de blusa branca. Fiz um pequeno texto para ler e separamos a música preferida de Lara para tocar na hora da cerimônia. Depois de almoçar, saímos andando pelo píer de mãos dadas em direção ao mar. Vânia carregava a urna. No final do píer a colocamos no chão, fizemos uma roda de abraços ombro a ombro e choramos. Só choramos! Juntos, abraçados. Não teve música, nem palavras. Nada que ensaiamos foi feito. Só a dor extravasou. Nesta hora não senti a presença de Lara. “Ela não gosta de tristezas”, pensei.
Não sei dizer quanto tempo ficamos lá, abraçados e chorando. Depois Vânia atirou as cinzas ao mar. Voltamos para o carro sem dizer uma palavra e assim chegamos no apartamento. Cada um foi para o seu quarto. A viagem terminou. Não saímos, nem conversamos, sequer jantamos. Cada um com sua tristeza. Mais tarde saí para uma caminhada. Ri ao reconhecer a mesma turma de ontem na beira da lagoa. Um deles gritou em minha direção:
— Desculpe a intromissão, a senhora achou o beck ontem?
Respondi com um aceno de mão dizendo não. Nesta noite não houve bebedeira nem risos. Acabou a palavra, acabou a prosa, acabou a alegria, acabou o pensamento, esgotou o discurso. “Lara já se foi”, pensei.
No outro dia fiz minha viagem de volta sozinha. Cheguei muito cedo no aeroporto. Sentei em uma mesa, pedi duas taças de vinho. Brindei comigo mesma e disse alto:
— É amiga! Nós te bebemos direitinho. Desculpe a intromissão, mas agora chegou a hora de ir de vez. Você fez certo em juntar esta turma para te trazer até aqui. Seguimos com os laços renovados graças a você. Vá! Vânia ficará bem. Ela tem a nós. Obrigada pela festa de despedida.
A pessoa da mesa ao lado me olhou meio assustada. Brindei de novo e degustei lentamente as duas taças de vinho. Primeiro a de Lara, depois a minha. Ouvi a chamada do meu voo. “Feliz regresso Marina!”
A dor surpreende, bagunça, excede, exagera, atua, magoa, transgride os limites do corpo. Viver intensamente tudo isto nos fortaleceu como amigos e nos deu a certeza de que tudo segue sem “desculpar a intromissão”.
Márcia Cris Almeida
28/11/2023