Memórias de uma janela
Era uma casa antiga, em um cômodo que ia e vinha gente, era toda torta, porém tinha seu charme. A dona Janela que tudo via e ouvia, passava seus dias observando o Doutor Thomas consultar seus pacientes, que em nada podia opinar, ficava brava também por não poder se consultar e nem que pelos menos desentortasse o que estava torto nela, mas como já ouviu muito e aprendeu nas consultas "Que às vezes temos que aprender a aceitar os nossos defeitos".
Doutor Thomas estava em consulta com a dona Maria, que chorava e reclamava que seu ex-marido não queria voltar com ela, mesmo que já tivesse batido por diversas vezes e tendo pelo última vez parado no hospital e que agora ele vivia muito bem com uma mulherzinha qualquer que conheceu no baile, mas nessa não bate e até já embuchou, são coisas que não dá para entender, mas a Janela analisava que esse marido nunca gostou da dona Maria, que chorava em vão por preferir algo ruim do que mudar. Era um dia lindo de sol lá fora, com poucas nuvens e a janela pensava que ali dentro era uma tempestade de lágrimas.
Nem todos dias eram assim, ela já viu um menino que contava como tinha sido divertido ter feito um amigo no colégio, depois de tanto tentar, alguém para dividir o lanche e falar bobeiras; e a dona Janela ali, foi pega do nada em pensamentos de suas próprias questões, jamais teria um amigo, apesar de considerar o Doutor Thomas em segredo um amigo, ao qual não pode se declarar nada.
Aos vêm e vão, dona Janela estava ficando meio caidinha e Doutor Thomas com mais rugas e cabelo cada vez mais branco. A sala não parece mais usavada com frequência e Janela se sente cada vez mais solitária e esquecida, sente um medo, pois sabe bem que humanos partem para o além mas as Janelas ficam e ela não sabe por quanto tempo.
Um dia a pobre Janela foi fechada por alguém, ela chorava por dentro, gritava por dentro, onde estará o Doutor Thomas? Estava trancada, era como se fosse sua própria prisão, como prender suas mãos e tampar seus olhos. E assim ela permaneceu, doíam os dias, doíam as semanas, doíam os anos, só queria se libertar, quem sabe alguém para a desentortar.
Alguns anos depois chegou uma mulher em um vestido roxo encantador, Janela estava quase desistindo mas essa mulher parou em frente a ela, abriu seu fecho escancarando-a, foi liberta de uma vez só, foi como voar novamente em direção ao céu.
Então vieram novos móveis, quadros e um punhado de coisas, um senhor parou e observou a janela.
- Tá um tantinho torta essa daí, vou dar um jeito, hein Rose.
Gritou falando para que alguém escutasse no andar de baixo.
Se aproximou da dona Janela, e com seus instrumentos cirúrgicos foi dando seu jeito, e não é que seu entortar ficou agora retinho.
Às vezes nós precisamos apenas de tempo para curar as coisas, sejam feridas, sejam defeitos, ou seja um entortamento.
Dona Janela agora observa toda imponente a brisa do vento e toda retinha, apesar do tempo perdido e das saudades do Doutor Thomas, valeu a pena esperar e agora ela tinha a Rose, neta dele. Dona Janela sempre observava o quadro do Doutor, com seu sorriso meio oportunista, bem na mesinha que era agora escritório da Rose. As coisas mudaram e ela sabe que vão mudar ainda mais até o fim dos tempos, era apenas uma janela, porém com memórias que ninguém poderia ter.