Admirável nova professora
Já de manhã os alunos foram iniciados naquela que seria a aula inicial de uma nova escola modelo. Prometia-se, entre outras coisas, um ambiente de ensino inovador, chamativo e automatizado. Um painel eletrônico colorido e cheio de imagens em cada carteira, chamado de note, com ambiente virtual de ensino, games e interface que pode ser customizada. Além disso, contava com bonecos bonitinhos que podiam ser personalizados à vontade pelos usuários. Tudo para oferecer uma agradável experiência pessoal, auto-identificação e um ambiente diferenciado de aprendizagem.
Era uma sala toda digital e auto funcional. As aulas do dia seriam sincronizadas conforme entravam os estudantes em seus notes, com informações exibidas em cada máquina, gerenciados por uma central inteligente. Um IA foi programada para depois repassar as atividades, monitorar o desenvolvimento dos estudantes e ajudar na resolução de dúvidas variadas, incluindo os assuntos da aula. O antigo “quadro negro” fora substituído por uma grande tela onde a agenda do dia anunciava as aulas de História, Matemática, Geografia etc. Nesse dia a aula piloto seria gramática.
Encantada, Aninha, mexia com seus colegas na superfície das telas fixadas nas carteiras, os notes. Enquanto isso uma voz feminina, ao fone de ouvido, lhes instruía, em tom suave (quase deleitoso) códigos de boa conduta, como aproveitar bem as aulas, e instruções ao acesso da plataforma digital. Em alguns apertos de botões na tela, Aninha entrou na interface da área de ensino, quase sem nem notar que a doce voz continuava a lhe dar as instruções.
De início queria acessar os jogos disponíveis e ver as novidades por si. Mas teria de esperar passar pelos tutoriais, que para seu contragosto, não podiam ser pulados.
Ali, em certo canto, uma mulher jovem e de cabelos soltos, que ela tomou por professora, ajudava um certo aluno em dificuldades. “Ele não conseguiu entrar será? Qual é o seu problema?!” Perguntava-se.
Voltou-se para a tela. Veio uma explicação de como usar seus “avatares” para acompanhar as aulas e “se divertir jogando games”. Seus olhos se arregalaram ante aqueles “bonecos” que ela podia personalizar conforme seu gosto. Já imaginava algo de roupas, acessórios e aparência enquanto o tutorial já seguia em frente. Agora o tutorial pulava as partes “divertidas” para apresentar a ela como se acessar as aulas, como se respondia as tarefas, entre outras funções. Quando parecia que iria acabar veio uma série de perguntas: tinha alguma dúvida? Aprendeu as principais funções do ambiente de ensino? Podia dizer quais eram as principais? (Seguia algumas opções para ela assinalar).
Uma voz irrompeu, pausada, porém em bom tom.
- Pessoal, peço que se alguém tiver dúvidas, por favor, me chame. Sou a supervisora Clara. – Dizia pela terceira vez a mulher que certamente era aquela que Aninha tinha visto a pouco. Infelizmente, quase ninguém escutou.
Mas que vem ser essa? Ora, uma palestra do projeto de “escola modelo”, que fora apresentada para os pais, um certo slogan chamava atenção, algo como “alunos: sejam seus próprios mestres”. Mas, na falta de uma direção completa da aula por uma pessoa, uma reconfortante personagem, a supervisora, entrava em cena. Certamente os pais se sentiriam mais seguros.
Eis que Aninha chamou.
- Professora!
- Oi meu bem, não sou professora, sou somente a supervisora. Em que posso ajudar?
Aninha olhava confusa. Tinha a pergunta na ponta da língua, mas engoliu assim que se recebeu aquela nova informação. Não havia professora?!
- Não tinha uma dúvida? – insistiu Clara.
Desembaralhando-se, Aninha soltou:
- Está muito chato, posso entrar na Internet?
Clara tentou disfarçar a surpresa. Não esperava que essas crianças se cansassem tão cedo das “novidades” daquele mundo digital. Sobre acesso à internet, e todas as funcionalidades e limites do sistema, fora capacitada por alguns dias, em curso condensado de uma semana. Também fora treinada sobre como devia ser o funcionamento ideal das aulas piloto. Estava ali para supervisionar e orientar os alunos no acesso ao sistema, reportar problemas e atender emergências, nada mais. As perguntas, muitas vezes repetitivas, começavam a incomodá-la. Fora isso, esse ambiente de trabalho lhe era realmente novo.
- Não meu bem, os notes não tem como acessar a rede externa. Tudo que você precisa aprender está aí.
Aninha revirou os olhos em sinal de desdém. Chocante não era, mas decepcionante. Olhou para os lados para ver se alguém estava escutando. Foi aí que percebeu que alguns de seus colegas já dividiam a atenção das telas dos notes com a de um velho amigo: o celular. Ficou confusa ao perceber que a supervisora parecia pouco se importar com isso.
Clara foi chamada outra vez: alguém queria ir ao banheiro. “Não precisa pedir permissão”. Disse. Então o aluno foi até a porta, fez uma conferência digital – devo dizer que essa parte também fora abordada na palestra com os pais, os quais aprovaram com louvores - e a porta abriu e ele saiu. Essa parte Aninha até viu, mas ignorou.
Começou a lição de gramática. Nada de “bonecos” personalizados, nem de jogos, por enquanto. Aninha soltou um suspiro enquanto ajeitava os fones. Sentiu algo meio peculiar no bolso da calça: reconhecia a sensação. Logo sacou o celular enquanto via, ou melhor, escutava a aula (um vídeo com muitos efeitos, “memes”, pessoas em situações inusitadas, e lições em meio disso, sendo narradas por uma voz misteriosamente tranquila).
Tudo ia “bem”. Se bem que Aninha e seus colegas já estavam entediados. Quem não estava entediada era Clara, a supervisora: foi aqui que um certo incidente interrompeu a “aula”. A “supervisora” chamou a atenção de todos (com acenos, falando alto, batendo palmas), e, assim que conseguiu atenção, disse para todos ouvirem, um pouco estressada:
- Pessoal, já estou repetindo a meia hora, sou a supervisora Clara, não sou sua professora! Estou aqui apenas para orientar vocês no acesso aos notes para vocês acompanharem as aulas. – Aqui alguns alunos, que estavam alheio ao restante da sala, se surpreenderam com o tom da supervisora - Não posso resolver os problemas da aula de vocês – continuou -, para isso vocês devem fazer as perguntas para a Betty, que é a IA de pronto ajuda que vocês têm instalada em seus notes. Também vocês podem retornar e conferir de novo o conteúdo que não entenderam. Ok?!
Seria melhor Clara ter agido de outro modo para esclarecer sua situação? Porque os alunos ao entrar não leram logo seu crachá de “supervisora” e tiraram suas dúvidas? E por que em casa os pais não trataram de explicar que os alunos não teriam professores, mas sim uma “supervisora”? Não se sabe muito a respeito. Talvez alguns alunos estivessem conscientes disso. Mas certamente outros não. Talvez alguns pais não tivessem se importado da troca da professora pela “supervisora”.
Enfim. Clara mal previu que assim que declarou seu papel ali, se veria em meio de uma enxurrada de perguntas. Em seguida começara uma confusão de vozes, risos, algazarras, tal qual ela então se viu em apuros para decidir se primeiro respondia as perguntas, dizia a todos para se calarem ou simplesmente saía correndo da sala.
Convém lembrar algumas frases repetidas quase como slogans em seu treinamento: “Os alunos, com suporte dos notes e das IAs, serão seus próprios professores”; “Eles saem a hora que quiserem, mas vamos monitorá-los. Não se preocupe com isso”. “Deixe-os à vontade, só atenda o essencial”.
- Então a senhora não é a professora? - Perguntou um menino.
- Mas ela já disse isso seu tonto –rebateu Aninha.
- Mas como ia saber, se eu estava assistindo os tutoriais ... – replicava o garoto.
Aninha e esse rapaz se desentenderam. Alguns dos presentes já vibraram de alegria ante a confusão dos dois e começaram a bater nas mesas com as mãos como se fossem batuques os quais estivessem espancando loucamente. Alguns alunos começaram a discutir se deviam ou não continuar a fazer a aula de gramática. Outros já pediam para sair. Prestando atenção, ou não, quase todos ignoraram veementemente as “normas de boa conduta” e “dedicação”, ditada nos tutoriais.
“Não fui contratada para isso”. Pensou Clara.