A Convenção dos Esquecidos
Lá naquele sanatório, tia Naja, aos noventa e oito anos, fora do seu juízo perfeito ensinava canto coral as enfermeiras, tia Nazaré, aos noventa e quatro anos, ex- costureira conversava com dona Zulmira, ex- enfermeira, que tinha noventa e dois e o seu Venâncio, ex- pedreiro, que tinha noventa e nove ensaiava o parabéns pra você, pra em qualquer ocasião resolver.
Tudo era tão calmo, bem pacífico até a chegada de Wilse, ex- dona de casa, a cantora mais nova, com oitenta e nove anos, faria noventa na semana seguinte. E sem uma ocupação definida, se punha a tocar viola e a escrever, mesmo não sabendo ler, mas contava com a ajuda de dona Esmeralda, ex- parteira, com noventa e sete, que não sabia escrever, mas sabia ler.
Engraçado o seu Getúlio, ex- soldado, ex- viciado em álcool, que aos noventa e dois gostava de cantar e ser o centro das atenções, contava quase sempre com a batucada do seu Samuel, ex- motorista, que mesmo surdo, em seus noventa e seis anos ritmava perfeitamente.
Conjunto formado a gente gostava de ver... dona Wilse na viola, seu Samuel na bateria, seu Venâncio no parabéns pra você , seu Getúlio repetindo e a tia Naja na regência colocando as enfermeiras pra fazer o coral. Dona Zulmira com a tia Nazaré esculachando, porque queriam continuar conversando e dona Esmeralda só na função de dizer olê, olê.
Com aquele espetáculo, que ninguém se entendia, era fácil sair de lá, meio que sem entender direito o passar do dia.
Mas o engraçado é isso acontecia sempre nos finais de semana, porque no curso dos outros dias não se via muita movimentação, embora os remédios de contenção fossem aplicados.
Ai um belo dia, dum sábado, que cheguei, já me preparando pra fazer parte do coral, abissal da tragédia humana fui chamada as pressas pro quarto da dona Naja...
Ela ergue as mãos aos céus e como se fizesse reverencia, entendido por mim, depois corrigida por minha colega, ela com as suas mãos, instrumento da vida toda, porque mais nova era maestrina e professora de piano, como sua última música, o silêncio regia ali, sob efeito da consciência a música do adeus e morreu.
Nós ficamos abatidíssimas a chorar pelos cantos, enquanto os outros pacientes ficaram calados e a partir daquele dia não houve mais festa.
Como não recebiam visita, nós éramos as únicas a tocá-los com o calor da humanidade, largados lá como crianças no orfanato, com os seus estímulos individuais se agrupavam no salão, embora doentes e dementes, eram sensíveis ao que passavam em sua frente.
No dia seguinte, foi dona Wilse, quem nos deixou. Amanheceu sem fala, com a perna dura como tala. Olhou ao redor e como se quisesse concluir, qualquer coisa, mesmo com dona Esmeralda se esforçando pra ouvir ela se foi em silêncio feito passarinho.
Dali em diante, o cenário só calava.
Conversando com a dona Nazaré, a mais ciente do mundo ao redor, quis saber o pensamento dela e ela, me olhou e disse:
- Minha filha, se é que posso te chamar assim, quando nasci fiz o meu pai e minha mãe felizes. Quando tive o meu primeiro filho foi a dádiva mais significativa de minha vida, quando tomei o meu neto e o meu bisneto no colo a emoção foi sem igual. Agora estou aqui, sem saber se terei um dia pra ninar ou contar história pra acalmar o choro das crianças.
Vocês vêem, vocês passam, nos auxiliam, nos fazem achar graça, mas fica tudo aqui. Nós além de cantar e conversar desordenadamente oramos a olharmos todos os dias pra aquela porta por visitas dos ausentes, que ora abre, se não pelo vento, se não pelo tempo ou por vocês, a nos dá bom dia.
E assim termina na vida a nossa poesia como utilidades esquecidas pela velocidade da tecnologia.