O Listeiro

22 Dezembro de 2004.

O despertador toca quinze para as cinco da manhã. Ainda é noite, meus parentes roncam. Acordo zonzo e meu primeiro pensamento é o de abandono: abandonar tudo e voltar a dormir. Mas preciso trabalhar. Preciso mesmo? É verão, e já dá para saber que fará um dia infernal na rua. Engulo um pão seco com café adoçado de ontem, ciente da azia vindoura. Vou ao banheiro, escovo os dentes e tomo um banho de gato. "Que adianta?", penso.

Tenho dezessete e anos e não tenho a menor ideia do que fazer da vida. Preciso terminar a escola e arrumar um trabalho. É isso que as pessoas decentes e pobres fazem. Há outra possibilidade além, claro, do crime? Esse trabalho que tem agora não pode ser permanente. É um bico, um quebra galho.

Troco de roupa e saio para a rua, rumo ao ponto de encontro, na rua de trás. Sou o primeiro a chegar. Uns poucos outros trabalhadores passando a caminho do ponto de ônibus e de um dia mortificante. Receio ser abordado por um assaltante e levar um tiro, visto não ter nada no bolso além de uns trocados para pagar a ida na Kombi e de garantia para poder pegar um ônibus de volta para casa no final do dia.

Meus companheiros começam a chegar. Alguns já estão em roda, enquanto um deles dichava, bola, acende, fuma, prende e passa, como diz a música. Logo cedo. O motorista abre a garagem e tira a Kombi. Começam a embarcar: é um momento de tensão. Todos querem o melhor lugar para tirar um cochilo durante o percurso de São Miguel Paulista até a Casa Verde. Equipe pronta e embarcada, a perua parte. Seis e meia temos que estar lá, na base, que é o local onde as equipes se reúnem. No trajeto, enquanto uns dormitam, nauseabundos, outros viajam na nuvem e em silêncio ou em risadas sem sentido. Eu fico quieto, na minha, reparando nas acelerações barulhentas, com as pernas espremidas entre dois marmanjos arreganhados, querendo dormir e não conseguindo. Vai amanhecendo na Marginal Tietê. São Paulo acorda, mesmo sem ter dormido. O sol, ficando para atrás, no Lado Leste, vai subindo, atravessando sem dificuldade uma névoa de poluição. Chegamos na base, assim como outras dezenas de equipes.

Tem esse cara, o chefe da operação, tal de Roberto Carlos , que sobe num palanque de palletes e grita com todo mundo. Dá bom dia, dá umas instruções, dá umas broncas e faz demissões em praça pública: quem fez cagada e foi pego no dia anterior, pode saber que terá seu nome chamado por ele. Mas todo mundo faz cagada, e todo dia todo mundo fica com o cu na mão até o momento em que ele dá por encerradas as dispensas do dia. Depois, chama os motoristas para uma sala e dá um mapa e um kit de FEUs (Folha de Entrega Unitária) para cada. Os mapas pertencem às regiões da cidade que precisam da lista telefônica que nós, os peões, entregamos.

- Hoje nós vamos para o extremo sul. Lá em Guarapiranga. Tenho sete FEUs, preciso de sete de vocês, diz nosso motorista.

Impasse. Nós saímos em dez de São Miguel. Restam duas opções para os três que sobrarão: voltar para casa ou tentar entrar em outra equipe, com desconhecidos, para lugares e com modus operandi distintos. Nessa hora, os novatos, por serem mais devagar na entrega, rodam. Ficam os mais velhos, os mais rápidos, os mais malandros. Estou na dúvida se quero embarcar nessa ou não. Não sou velho, não muito rápido e pouco malandro. E de Guarapiranga para casa deve dar umas quatro horas de ônibus... Antes que eu pudesse decidir:

- Você! Vambora.

Viagem da Casa Verde, zona norte, até Guarapiranga, zona sul. Começa a dar fome. Trânsito.

Quase duas horas depois, chegamos no ponto de encontro. Há mais duas equipes. E um caminhão. Nesse caminhão estão as listas telefônicas e os carrinhos para carregá-las. O desembarque das listas e a escolha dos carrinhos é feita pela ordem de chegada das equipes. Chegamos por último: restarão carrinhos arrebentados e listas soltas, que não se fixam no carrinho e dão trabalho dobrado. Desembarcamos nossas listas e carrinhos. Agora é feito o sorteio para quem vai pegar qual mapa das ruas. É outro momento de tensão: alguns conhecem a região e sabem as ruas que dão mais dinheiro, ou as ruas que são ladeiras, ou as que só têm comércios, e vão fazer de tudo para ficar com o mapa mais vantajoso. É feito um sorteio para estabelecer a ordem de quem escolhe. Fico em segundo, pego um mapa que parece ter ruas menos complicadas ali por perto, monto meu carrinho com as listas e saio andando.

- Três e meia a gente se encontra aqui, então. - Diz nosso motorista.

Nove e meia da manhã. O horário já gera ansiedade. Está tarde. Não posso demorar com as entregas porque senão vou ter que voltar de transporte público para casa. Para piorar, minhas ruas não eram tão perto do ponto de encontro quanto eu havia suposto.

Bato palmas na primeira casa da lista de entregas. Abre-se uma janela e aparece uma senhora com cara de dúvida.

- Pois não?

- Entrega da lista telefônica, senhora. Faz favor.

- Já vou.

A mulher vem por um corredor batendo o chinelo e enxugando a mão em um avental. Ela tem cheiro de produtos de limpeza.

- Tá em nome de quem?

- Maria Conceição. É a senhora?

- Eu mesma.

- Então assine aqui, faz favor.

- Aqui?

- Isso.

- Pronto.

- Tá aqui a list...

- Muito obrigada, viu. Tchau.

E dá as costas.

- De nada... Senhora, viu?

- Oi?

- O pessoal tá colaborando com uma caixinha para ajudar o entregador.

- Hum.

- A senhora pode colaborar também?

- Tem dinheiro não, moço.

- Não, não é dinheiro "dinheiro", não. É qualquer moedinha que tiver jogada no vão do sofá, em cima da geladeira. Já ajuda bastante.

- Então espera um pouco que vou ver o que eu acho lá dentro.

- Tá bom.

A mulher volta com um punhado de moedas. Pego, coloco no bolso sem contar, agradeço efusivamente e me despeço.

A primeira lista já foi. Só faltam mais noventa e nove.

Fiquei com um carrinho cuja roda esquerda está com jogo. Ele fica dando solavancos e as listas vão pendendo pra esquerda, e de quando em quando tenho que ficar ajeitando. Isso irrita. É uma rua de asfalto ruim. Bato na próxima casa. Sai um homem.

- Lista!? Pedi lista não.

- Em nome de Geraldo.

- Sou eu, mas não pedi isso não. Onde você conseguiu meu nome?

- Eu não sei, a empresa que me passa a lista, eu só faço a entrega.

- E qual é seu nome? Como conseguiu meu nome?

- Senhor, sei não.

Já deve estar fazendo uns vinte e oito graus, e o homem cismou.

- Me passa o telefone dessa empresa.

- Passo sim.

- E o seu nome.

- Tal de tal.

- Um absurdo isso. Eu não pedi lista. Não quero saber disso. Vou ligar lá reclamando!

- Tudo bem, senhor. A sua lista volta. Pode ligar. Eu vou indo, então.

- Tá bem, meu filho. Deus abençoe seu trabalho.

Não sei se acredito em Deus, logo, não sei o que responder.

Chamei em uma casa que tinha uma sombra agradável e que não estava na lista de entregas. Do portão para lá estava geladinho. Tinha uma escada, e uma janela alta. Bati palma novamente e apareceu uma coisinha de olho azul, linda.

- Oi?

- Oi, moça, entrega da lista telefônica. Pode vir receber, faz favor?

- Peraí.

Desceu a escada com roupa de pijama. Parecia ser um pouco mais velha que eu. E estava ali, tranquila, já devia ter terminado as aulas, estava de férias, assistindo TV Globinho, tomando um toddynho. Era de uma beleza que me deixava inquieto. Ela sorria, e parecia se divertir com meu visível embaraço. Eu não sabia mais o que estava fazendo ali.

- É lista do quê?

- Telefônica. Assina aqui, por favor? Nome legível.

- Aqui? - Com o dedinho com a unhazinha pintadinha de rosinha apontando uma linha.

- Isso.

- Só isso?

- Precisa do seu telefone também.

- Tá. Pronto.

- Feito, então.

- Então tá, obrigada. Tchau

- Obrigado você. Tchau.

Deu as costas. Fingi embaraço com os papéis e fiquei olhando ela subir a escada. Olhei onde ela havia assinado. Aquele número de telefone... Pensei em comprar um cartão telefônico, achar um orelhão e ligar. Ficar jogando conversa fora com ela. Jogar as listas todas por cima de um terreno baldio, assinar tudo com nome falso e esperar ser chamado pelo Roberto Carlos no dia seguinte. Ela me convidaria pra almoçar. Subir para o quarto. Valeria a pena.

É bom sonhar. Mas e realidade é outra. Está sendo um dia fraco de caixinhas, já havia entregado quarenta listas e não tinha vinte reais no bolso. Varado de fome, encontrei um PF para almoçar. Bati um pratão e uma Coca de 1 litro sozinho. Fui pagar e os caras não deixaram.

- Deixa uma lista dessa aí que tá tudo certo.

- Não posso, moço. Tá contado.

- Uma só não vai fazer falta.

- Pior que faz. Posso perder o emprego.

- Tá certo, então. Mas o almoço é por nossa conta.

- Que isso, estão mimando. Agradecido.

Depois do almoço, a moleza. Sob um sol causticante de dezembro. Batendo de casa em casa, a mesma ladainha.

- Caixinha, senhora, pra ajudar a pagar o almoço.

- Sabe aquele pinguim da geladeira? Sempre tem uma moeda perto dele.

- No painel do carro do senhor com certeza tem uma moeda esquecida.

- Sabe aquela calça jeans que você usou ontem e deixou no cesto de roupa suja? Veja no bolso dela.

As gorjetas pingavam: de envergonhados cinquenta centavos até raros e ousados dez reais - o ápice.

Entrei em um prédio de escritórios. Um recepcionista bem apessoado, limpo, bem vestido, me atendeu. Foi cordial, calmo. Também, pudera, trabalhando sentado na frente de um computador, com ar condicionado gelando. "É de um emprego desse que preciso", pensei. Trabalhar com roupas limpas. Limpo. Isso, não no sol, empurrando cem listas telefônicas ladeira acima, levando xingo de aposentado, correndo de cachorro, aguentando dondoca fazendo cara de nojo e mendigando moeda de donas de casa atarantadas por terem sido interrompidas em seus afazeres.

Minhas ruas tinham acabado e ainda restavam quinze listas. Muitos boatos que rolavam tratavam que os motivos das demissões - além das assinaturas falsas, da vadiagem, da venda das listas para terceiros - era sobrar listas demais ou de menos. Para a empresa era impossível ter uma entrega 100% bem sucedida, bem como ela ser um fracasso total. Eu não tinha ideia do que era verdade ou mentira, mas tinha estabelecido na minha cabeça que o percentual de devolução aceitável devia ser na casa dos dez por cento. Então eu tinha ali cinco listas para dar um jeito de me livrar. Virei em uma rua que não fazia parte do meu mapa e me certifiquei de que não havia outro entregador lá. Olhei para uma casa. "Acho que o Belmiro Ferreira mora aí" e, sendo destro, assinei com a mão esquerda o nome do Belmiro Ferreira em um espaço em branco da FEU. A gente chama isso de Chico Xavier. E foi assim por mais quatro casas: das donas Marina e Valdelice, dos seus Sebastião e Lino.

Voltei ao ponto de encontro às quatro da tarde. Havia três camaradas lá, esparramados na calçada, depois de fumarem uma tora. Comecei a esvaziar os bolsos e contar o dinheiro.

- Fez quanto?

- Contando ainda. Mas não muito. Estava ruim. Peguei uma rua que do lado era casa, do outro a porra da represa.

- Fiz noventa e sete.

- Eu fiz oitenta e seis, diz outro.

- Fiz cinquenta e dois, respondo. Ainda que não paguei o almoço hoje. Tá bom.

- Bom? Se for pra fazer cinquenta reais eu fico em casa dormindo.

Me joguei no chão também. Ofendido. O cansaço e o sono que sentia eram indizíveis para começar uma contenda. Parecia que tinha levado uma surra. Me sentia imundo e com vontade de cagar e com saudades da minha cama. Chegaram mais dois colegas, reclamando e se gabando do quanto haviam feito. Faltava um chegar para podermos ir embora. Todos eles eles eram caras mais velhos do que eu, beirando os trinta, os quarenta, pais de família e maconheiros e ex-presidiários que eu via pra lá e pra cá vadiando no bairro e que antes de entrar no ramo das entregas, eu procurava evitar qualquer tipo de contato. Tinha um certo respeito, talvez medo. A malandragem era excessiva. Mas eram engraçados e sinceros. E de pavio curto. Não sei quem falou o quê e teve início uma discussão que acabou em porradaria e dente mole. Não tentei separar, fiquei maravilhado e paralisado olhando a cena se desenrolar. Se separaram trocando ameaças de morte. Pronto. Como é que dois caras com pinta de bandido se ameaçando de morte iriam em uma Kombi do extremo sul ao extremo leste de São Paulo sem se matar?

Às cinco e meia chegou o último entregador. O filho da puta havia se perdido, rodou o bairro em círculos, escolheu uma esquina aleatória e decidiu ficar sentado esperando um milagre. Por acaso o milagre aconteceu e informaram a ele onde estávamos parados esperando e ele conseguiu chegar. Nosso motorista bufava. Estava com fome. Todo o resto, já laricado, também. Embarcamos. Na beira da rodovia alguém viu uma churrascaria anexa a um hipermercado.

- Vamos parar lá.

Fomos. Entramos de bonde, com as roupas esfarrapadas e as caras cansadas. Era um rodízio. Estava trabalhando no meu prato quando começou uma movimentação. Um dos nossos conhecia um dos garçons. Ficaram de tititi um no ouvido do outro.

- Espero vocês lá fora em quinze minutos, disse o garçom.

Pagamos a conta e saímos no estacionamento. Já era noite. Antes que eu pudesse perceber, eles haviam estirado quatro linhas de pó em cima de uma prancheta e vinham com uma nota de dois enrolada pregada no nariz fazendo a mágica de fazer desaparecer as linhas brancas. Os que haviam saído na mão cheiraram na sequência, como bons amigos. No rádio da Kombi, Diário de Um Detento tocava. Encostei com o motorista, o Tana, em um carro do outro lado da pista, evitando participar daquilo.

- Você tem que estudar, Rafaeli. Sair dessa vida.

- Eu repeti de ano de novo, Tana. Levo jeito pra isso não.

- Mas tem que insistir, tem que dar um jeito. Essa vida aqui de listeiro é sem futuro. Faz faculdade, Rafaeli.

- Faculdade!?

Eu não sabia o que dizer, pois não sabia o que iria fazer quando aquela campanha acabasse. Ia mal na escola, não dava pra ser médico. Não levava jeito para mecânico. Só sabia entregar panfleto de mercado e lista telefônica. Lia mais de quatro livros por mês, mas de que isso servia? Não sabia sequer me expressar do jeito que pensava. As palavras sempre saíam bambas, inseguras, trêmulas. Um inútil.

- Vamos embora, rapaziada! - Berrou o Tana.

Embarcamos. Uns de olho estalado de farinha, outros de olho murcho depois de mais de 12 horas de atividade. Silêncio. Só o barulho do motor da Kombi deslizando na Marginal; um barulho que parece que penetra no ouvido e gruda no cérebro. E o fedor de sovaco no ar, que parece que incrusta no nariz. Interrompendo o silêncio, Tana diz:

- Eu não deveria falar, mas amanhã a gente vai fazer a região do Parque do Ibirapuera.

Começa um burburinho de risadas e mãos estalando em cumprimentos. Alguém diz algo sobre lavar a égua. Eu rio e pego no sono.

Garotos Podres - Garoto Podre

10/10/2023

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 10/10/2023
Reeditado em 14/10/2023
Código do texto: T7905606
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