Um quarto de hospital e uma vida inteira
Dona Ivone vai morrer em 18 horas e 23 minutos. Todos sabem da iminência da morte. Só não têm a precisão do tempo.
A morte certa pouco importa no momento. O importante agora são as vozes chorosas dos cantores sertanejos no celular, a cerveja gelada e, principalmente, os dois filhos.
No dia anterior, o oncologista Augusto fez a pergunta necessária:
- Dona Ivone, o que a senhora deseja? Pode pedir qualquer coisa.
- Cerveja - respondeu com voz funda.
A resposta surpreendeu a todos, até mesmo à Morte, que rondava a paciente com riso sarcástico.
- Por quê? - a pergunta do médico atendia a uma dúvida geral daquele quarto de hospital.
Dona Ivone trouxe da memória uma cena repetida, dessas que fazem a vida valer a pena. Ela disse que, em toda sexta-feira à noite, fazia carne de panela com mandioca, comprava meia dúzia de latões de cerveja e esperava os dois filhos. Eles, que eram pedreiros, saíam do canteiro de obra e iam à casa da mãe. Os três comiam, bebiam, ouviam música sertaneja, contavam histórias e davam risadas até altas horas…
Tudo foi preparado para aproximar aquele momento no hospital das lembranças de dona Ivone. Em seu leito, ligada a aparelhos, a idosa sorriu bebericando uma cerveja e vendo os filhos contando histórias e dando risadas altas. Médicos e enfermeiros também brindaram à vida, esse piscar de olhos que acontece entre o nascer e o morrer. O celular, acomodado sobre o travesseiro, tocava modas sertanejas, as mesmas de tantas sextas-feiras. Dona Ivone movimentava a cabeça lentamente, em velocidade muito aquém do ritmo da canção, mas em perfeita harmonia à dignidade dada à morte.
Morreu no intervalo já dito acima. Os filhos choraram com alegria, saudade e agradecimento. Para eles, a mãe não era o corpo no caixão, o corpo que descia ao túmulo. Era a senhora alegre, que se fazia plena nas eternas noites de sextas-feiras. Uma mulher que viveu uma vida inteira.