Rouco Louco
Perdido caminhava sob o sol, que distante dali explodia e se transformava no seu interior, emanando implacáveis raios solares que ressecava, rachava os lábios, prejudicava a garganta, mal tinha voz. Um homem que mal se podia reconhecer, sua identidade parecia tudo que lhe fora imposto. Como camelo no deserto, ele se deslocava por entre terras secas e mata rasteira que parecia querer expulsar quem quer que fosse de lá. Flora de muitos espinhos.
Por muito se deslocou, até que por acaso, que ele chamou de sorte, avistou um homem que parecia parte de todo aquele cenário. Homem grande que cavalgava um animal rude, tal como o cavaleiro e as matas ali. Viu naquilo uma derradeira esperança, de tal modo que tentou emanar sons de sua garganta com a força que pôde, mas as ondas sonoras que saíram não fizeram suficiente efeito, dada a situação de sua garganta. Então, resolveu que, talvez jogando uma pedra, aquele homem o percebesse. Assustou o burro, cavalo ou jegue, o que quer que fosse, mas cumpriu o que se esperava, na verdade até com maior efeito.
O cavaleiro veio em direção ao homem tão rápido quanto um estridente som, com tanta força como se inspirado por um rugido de leão. A comunicação deles começava assim, feito algo confuso, que mal se pode ver e machuca os olhos, poeira. Iniciava com uma tentativa desesperada de chamar atenção que foi uma violenta pedrada e depois uma confusão no que era possível ser visto.
– Você que vem com tamanha imposição, queira perdoar meu ato de desespero, que se fez na pedra atirada em sua direção – O homem buscou se justificar da melhor maneira que pensou, como modelos do que se deve dizer.
– Óia rapaz, além de jogar uma pedra em mim, ainda vem querendo se achar superior a eu? Falando feito bicho de metal – Expressou toda sua confusão da maneira que pôde, reagindo a esse encontro confuso.
– Não é minha intenção estar em posição superior a sua, quero apenas me expressar de maneira correta para que entenda, foi assim que me disseram ser certo comunicar. Gostaria de lhe pedir um pouco de água ou ajuda, como pode ver estou abandonado nesse deserto – Falou, falou, falou, mesmo com a voz quase não saindo, de tal maneira prejudicando ainda mais sua garganta.
– Então quer dizer que o jeito meu de dizer as coisas é errado? Pois não vou lhe ajudar, não. Primeiro, joga uma pedra em mim e, agora, me chama de burro. Acho bem feito que você veio parar aqui, se comporta igual a uma receita, deve ser mais um banido das construções. O que tenho para dizer para você e para as construções é NÃO!! – Então apressou o cavalo gritando alto como o rugir de um leão.
O homem já sem esperanças percebeu então que seu modo de falar, de se colocar no mundo não estava funcionando. Ele sentiu que sua relação com as palavras até então só o tinha trazido desgraça: “primeiro, escrevendo como sempre mandam, reproduzindo as fórmulas de texto que sempre me mandaram naqueles malditos escritórios, até chegar um idiota e escrever qualquer bobagem errada para eu ser substituído”. Segundo as leis daquelas terras, quando você não serve aos escritórios ou construções, deve vagar pelas terras secas. Assim, alguns homens passavam a viver e se expressar de maneira contrária àquelas leis, os rudes homens que só sabiam negar, violentos, numa vida de reação.
Que podiam fazer? Diante de todas as imposições, você persiste como receita sem identidade, mesmo que isso lhe mate, ou reage. Ainda assim eram todos quase sem identidade, pois viviam todos iguais, eram os que diziam não. O homem viu que se expressar segundo as imposições dos outros só o enfraquecia, então resolveu também se revoltar; agora, sua expressão iria ser outra. Sabia que ser um dos que usam as palavras apenas como “sim” havia lhe colocado naquela situação de quase morte. Tinha ciência de que dizer “não” o largaria numa situação solitária pelas terras secas, rude como elas, até tentou se rebelar assim, gritou e em roquidez pareceu rugir. Mas aquilo também lhe doía, o machucava e como fez o cavaleiro, podia machucar outros ou mesmo como fez ele, jogando pedra no cavaleiro.
Então, sua relação com as palavras, seu modo de dizer para outros, seu modo de ser devia ser outro. Afinal, como ele falava era também como ele pensava, era ele. Era, também, uma imposição de outros; então, haveria ele de ao menos ressignificar aquilo. Sabia que alguns já nasceram sabendo usar as palavras, nasceram para falar, para escrever; então, ele decidiu escrever para nascer, falar para ser outro, ser palavras novas, ser neologismo. Resolveu, assim, falar como louco, inocente, esquecido, agir como criança, cavar a terra, até mesmo bater com paus nos cactos e então achou água. Ele, agora, já não tinha sua boca ressecada, falava feito criança, podia criar seu próprio mundo, ressignificar sua existência. Agiu como o sol, queimou em si e explodiu em algo novo.