Carnívoro prazer secreto
A esposa era por demais dogmática. Vivia a vida com as afirmações que fazia de si e na esperança de ser reiterada pelos outros; eram suas âncoras. Uma vez que, com determinado dinheiro e uma boa vizinhança que lhe permitia um sentimento comum de estar dentre aqueles que usufruiam medianamente de uma vida confortável, mudanças drásticas em suas âncoras (nas palavras que lhe definiam), eram tão frequentes quanto eclipses solares e chuva de meteoros no centro-norte do Brasil tropical. Desse modo, não tinha tantas crises existenciais ou problemas que implicassem uma meditação prolongada sobre sua posição no mundo.
É preciso dizer do discurso que um dia ela ouviu em algum take retirado de um documentário chamado "Por que ser vegano". Não negando, de fato, sua cordialidade inata para as causas animais, mas o desejo se deu somente para a conquista dos adjetivos categóricos que ouviria ao ter um corpo modelado. Pronto, uma nova âncora colocada, dessas viriam outras, uma vida se preenchendo como não se preencheria sua barriga de carne bovina ou suína.
O seu companheiro, num plano quase que completamente oposto ao seu, pelos gostos, tom de pele, classe social, afinidades ideológicas etc, vivia no encalço das decisões da esposa. Seguia com alguns resmungos, afinal ele se perdeu onde exatamente um homem deveria assumir papel no comando de uma mulher, não que ele fosse fraco, mas o patriarcado não funcionaria numa mulher como esta que lhe vivia. A decisão de uma dieta vegana pegou-lhe de surpresa. A instituição de ser homem estava chegando nos limites com algumas decisões. O que de mais nobre faz um homem? Ora, a pulsão sexual quase avassaladora, a dureza do corpo e grosseria de espírito e, obviamente, assim como o gosto insaciável pelas mulheres, o gosto insaciável pelas carnes e animais mortos. Seu mundo entrava em ruína, ela deu-lhe alguns momentos de liberdade para expressar sua opiniões controversas acerca do partido veganista que estava se formando naquela casa, mas foi em vão, e ao menos pode vomitar o medo.
O crime começou depois de um período de abstinência. Amarrado na falta de decisões do que comer, regrediu ao controle de si através de pequenos delitos contra a repressão. Comprou um kilo de carne de porca, era o suficiente para comer em um dia, escondeu numa parte invisível do congelador e esperou pacientemente. Numa tarde acordou com a vontade necessária para cometer todos os delitos sem sucumbir à culpa. Naquele dia não experimentaria o gosto pálido das verduras.
O sol esquentava e o cheiro espalhava-se. A casa silenciosa e livre das ordens femininas permanencia sonolenta, poeiras que descansavam aqui ou ali. Apenas o som da faca descendo sobre a porca acordava os móveis. Tudo era feito com paciência e atenção. O cheiro adocicado participou de uma dança no ar ao se misturar aos temperos na gordura, que chiava e chiava. Inebriante cheiro de um rito sacrificial. Era uma meditação; para a porca, para o homem, para os móveis que abraçavam a poeira que logo iria embora.
Quando a esposa surgisse no alto do Palácio como uma imperatriz, ele já teria limpado todo o crime. Só restaria a sua felicidade de um prazer carnívoro secreto que não lhe poderia denunciar. A felicidade que se mostra não pode jamais delatar suas causas, a menos que a causa seja uma traição.