A Visagem da rede armada

A casa estava cheia, que nem barco, quando vem do Arari ou de Ponta de Pedras pra Belém, sem fiscalização no tempo de festividade. Mas não era sem tempo, pois no dia seguinte, daquele outubro, aconteceria, o que já se franquiou nas mídias, como o natal paraense , bem conhecido, no país a fora como o círio de Nazaré.

A ansiedade e a afobação, para preparar a hospitalidade, a alimentação do corpo, a roupa adequada e a fé, consubstanciada pela agitação das crianças, ajuizada a lendas, simpatias e contos norteava sempre um escarcéu naqueles dias, que no fim de tudo, pra uns acabava bem e quase sempre pra outros, no caso os pequenos terminavam, não tão bem assim.

Com a maniçoba apurando nas latas doadas pela Renda priori, cozendo sobre as lenhas há semanas no quintal, vovó Nazaré se preocupava conosco e alertou a dizer:

- Maria fique de olho nesses moleques, que a Wilse e a Morena, teimosas deixaram essas latas de comidas no fogo, ai no terreiro e foram buscar cordas, para mais, aqui na aliança, Mas tu sabes, como é o Albertinho, o Higino e Júnior, esses três juntos são arteiros e se juntarem aos filhos da Lourdes, nossa senhora, a casa vai incendiar e alguém pode se queimar.

- Deixe tia, que quem passar pra esse lado, vai pegar uma sapecada. Concluiu assim carinhosamente, Maria.

Fogo ardendo no quintal, feito fogueira de São João, com aquelas latas; umas com pato no tucupi no jambú, Maniçoba, Vatapá e Carurú , atiçando vorazmente a fome de quem passava e sentia no ar, aquele cheiro fenomenal.

No amanhecer, do grande dia, tias e tias pra tomar a benção, redes a se bater e o café reforçado com tapioca e bejú, batata doce, bolo de macaxeira, cuscuz com café, suco de Cupuaçu e bacuri naquela mesa de madeira, jamais acostumada a fartura, de um tombo se escorou na parede pra não cair. Enquanto noutro cômodo vovó Wilse procurava sua roupa, Benedito ainda estava no banheiro comunitário, Lourenço na fila, Ademar reclamavam da demora no banho, enquanto os pequenos, Albertinho, Júnior e Higino já banhados calçavam as meias. A tia Nazaré também pronta arrumava a Heliana, Tia Dina cuidava das panelas, enquanto Morena procurava o sapato, Tia Lourdes ajeitava seus filhos e cuidava do vovô Baltazar, com a vovó Vigília. Afonso amarrava os sapatos do Aldenir e do Adevaldo, Carlinhos ainda não havia chegado da Grapette e o Alfredo de zanga, com a cara emburrada dizia baixinho, que não queria sair dali.

Confusão inflamada, quando se olhava o relógio a dizer do pouco tempo pro evento acontecer e eles teriam ainda que percorrer a pé, da Doca até o Ver o Peso. Nesse vai e vem, redes armadas, panela ardendo na lenha, moleques gritando, nervos aflorados pulsando e toda ordem de uma bagunça pré estabelecida dizendo que algo iria acontecer.

Benedito saindo do banheiro olhou para o céu e viu nuvens se formando, mal teceu um comentário de chuva e logo foi desconjurado.

Num empurra empurra, estágio de casa, devagar foram saindo, saindo, quando vovó Wilse se incomodou com tanta rede desocupada e estendida, tomada de nervosismo e misticismo rural falou :

- Por favor, alguém desarme essas redes, pra que as almas não venham e deite. Tal comentário esbugalhou os olhos de medo, da molecada, repelido pelo vovô Benedito, que disse sem medo:

- Ora pílulas Wilse, deixe de asneiras, onde já se viu, a gente quase atrasados e tu preocupadas com mortos a virem deitar na rede. Isso era lá no interior, aqui na cidade é outra realidade.

Dito isso, muitos múrmuros a favor e outros a minoria , contra. Todavia tia Dina, Lourdes e tio Lourenço acataram e começaram os desarmes. Foi quando tio Ademar gritou:

- Andem depressa ou deixem como está, pois ouvir no rádio, que o andor da santa já saiu da Sé.

Tumulto generalizado, cascudo na cabeça do Alfredo, que ficou mais emburrado, puxão de orelha no Albertinho e no Higino, por estarem correndo no terreiro, Afonso já lá do outro lado da rua, com Heliana, Aldenir, Júnior e Adevaldo. Tia Morena, tia Dina, Maria, vovô Benedito, vovó Vigília e vovó Baltazar saíram as pressas com a tia Lourdes e os seus filhos, enquanto o tio Lourenço fechava a casa.

Inquerido pela vovó Wilse sobre as redes, ele pacientemente, como sempre falou:

- Mana velha, se ficou alguma armada não vi. Mas fique sossegada, nada vai acontecer.

Aquela multidão de gente e moleques, que saiam contentes , menos o Alfredo, que ainda estava emburrado. Todos devidamente alinhados numa procissão, de terço, fitas e velas, como uns alunos a formandos, que na visão local mais pareciam adeptos de uma imensa cobra, a se desdobrar.

Assomados a fé, naquele mar de gente a esperar, esperar, suportar um calor além da conta, começaram a ver o carro dos milagres, dos anjinhos e o andor da santa se aproximar trazendo a maresia da corda da tormenta, que no popular dizem das promessas.

Sol a pino, trinta minutos de cirenes e fogos de vista homenagem dos servidores, faixas de agradecimentos e amores, celebridades no alto dos prédios, crianças no alto do pescoço de seus pais, tios ou avós, gente no alto das árvores, cantores e o hino tocado a suavizar. ainda se via, do outro lado do Guajará, o rio cheio de canoinhas, ribeirinhos a se benzer por graças alcançadas.

Na volta pra casa o alento de quem foi ao confessionário, os seus pecados amenizar. Alegria no rosto da molecada, com seus barquinhos de miriti, aviõezinhos de lata de óleo jaçanã, bonecas de plástico, carrinhos de madeira, bola com balão por dentro e tantos outros exóticos brinquedos pra criançada se acalmar.

Enquanto isso, já em casa Carlinhos cansado da madrugada de trabalho, se deitou numa das duas redes com a mesma escapula esquecida de desarmar . Uma puxava a outra, a embalar, o som e o cansaço o fez roncar.

Lá pelas uma hora da tarde, quando da procissão a família começou a se desmembrar, começaram a chegar em casa no mesmo bloco, com a fome pelos miolos, calos dos sapatos novos e o calor a degradar.

Vovó Wilse, sempre muito atenta tirou a chave do bolso e ao colocar abrindo a porta foi logo entrando, seguida pela sua irmã Nazaré que foi ao quintal ver a comida. Aos poucos todos foram entrando, se alojando, reclamando e se preparando pra tomar aquele banho, quando a vovó entrou no segundo compartimento e viu uma sobra que balançava numa rede alinhada a outra vazia, que ia e vinha.

Tomada de susto, por suas fantasias ela gritando saiu no desespero:

- Maria, minha filha acuda aqui, eu não disse Bené tem uma visagem deitada na rede. E desfaleceu ali mesmo, enquanto, o grito ecoava pelo resto da casa, vovô Baltazar e sua esposa Vigília, Alfredo, já desemburrado com o seu brinquedo, Albertinho, Higino, Júnior , a molecada toda, Afonso, tio Ademar, Aldenir e Adevaldo, tia Morena saíram em disparada, atropelando quem estivesse na entrada da porta principal. Não deu nem tempo de se certificar, tal era o medo a contagiar. Quem estava quase com calo nos pés, fez sangrar; quem estava mudando a roupa saiu enrolado na toalha; quem queria entrar foi pisoteado, caindo sentado...

Tia Nazaré tão perturbada ficou, que quase se queima, mas pegou uma vassoura pra enfrentar; vovô Benedito, que dizia não acreditar ouviu o ronco e ficou estático, como uma vela... Tia Dina com mamãe Maria temeram, mas foram averiguar, juntamente com o tio Lourenço, que foi atropelado por Calinhos sem camisa, todo assustado, correndo atordoado, com medo, sem entender nada, parecendo siri na lata.

Água com açucar pra cá, água com açúcar pra lá...risos e nervosismos, aos poucos foram recobrando o juízo do medo, explicado o que não fazia sentido e se assentaram naquela grande mesa a comer e beber, celebrando círio daquele ano.