VISÃO

Eram dezessete horas e meia, mais ou menos. O padre deixou a casa paroquial naquele seu único dia de folga na semana.

Caminhou até a praça logo à frente e viu um menino de aproximadamente seis anos, agachado, cavoucando a terra, sobre um canteiro de flores.

O religioso chegou até a criança, em silêncio.

Ao observar o padre, o garoto levantou a cabecinha e disse:

- Boa noite!

O padre, surpreendido, indagou-lhe:

- Não é hora de criança estar em casa tomando banho para jantar?

- O garoto, olhando-o com ternura, respondeu:

- Quisera que todas as crianças pudessem ter o que comer. Por certo, se isso fosse realidade, nenhuma estaria vagando pelas ruas a esta hora. O senhor já imaginou quantos inocentes estão jogados nas ruas nesse momento, e famintos?

A perplexidade tomou conta do padre, o qual jamais imaginara receber semelhante resposta de uma criança. O menino levantou-se. O religioso percebeu que sua camiseta estava suja de sangue a altura do peito esquerdo.

Preocupado, o padre perguntou:

- Isso é sangue? Quem te machucou?

O menino disse-lhe:

- Muitos me machucam.

- Mas eu sou padre e quero ajudar-te. Responda-me, quem são os que têm a coragem de machucar tão linda criança? Disse o padre.

- Muitos, muitos! Disse o garoto.

- Mas onde estão essas pessoas, fala-me que poderei ajudar-te. Continuou o padre.

- Elas estão em todos os lugares, inclusive na Casa do meu Pai, disse a criança.

Ouvindo isso, o padre sentiu uma sensação estranha percorrendo todo o seu corpo. E continuou:

- Como pode estar na Casa do Pai alguém capaz de ferir uma criança? Jesus disse: deixai vir a mim as criancinhas, pois delas é o Reino de Deus.

- A resposta está na “parábola do joio e do trigo” que o senhor tão bem conhece. Vinde, dê-me tuas mãos e acompanha-me, disse a criança, tomando as mãos do religioso.

- Para onde queres levar-me? Perguntou o padre.

E de mãos dadas com o padre, o menino foi entrando na Igreja Matriz e dirigindo-se aos quinze quadros que retratam a Paixão de Cristo, expostos à esquerda do altar.

- Veja, aqui está o resumo da história de quem ofereceu a sua própria vida para salvar a humanidade - disse o menino.

E apontando estação por estação comentou-as com impressionante conhecimento de exegese bíblica. Muitas vezes falava por parábolas, servindo-se de uma erudição surpreendente. O religioso comportava-se de forma atônita, procurando entender o que representava aquilo.

Encerrada as explicações da décima quinta estação, a criança segurou com força as mãos do padre, puxando-o para si, e correu em direção do Altar-Mor.

- Venha conhecê-lo... Ligeiro... Olhe, Ele está aqui! E soltando as mãos do religioso a criança dirigiu-se, apressada, aos degraus que a conduziam ao Santíssimo.

Uma luz descomunal invadiu o altar. Era uma claridade anômala, tão incomum que o padre sentiu-se como se estivesse dentro do sol. O fenômeno o deixou cego. A luz faiscava intensamente, aumentando a cada segundo. O Altar pareceu estar suspenso e o padre sentia-se levitar, procurando a criança que silenciara.

Prostrado, perdeu os sentidos.

De repente percebeu que estava caído aos pés do altar, abordado por algumas crianças que entraram para rezar o terço.

Questionado pelas crianças sobre o que fazia ali daquele jeito, desconversou, dizendo que estava prostrado em oração.

Olhou o Santíssimo, fez o sinal da cruz e saiu com ar contemplativo, caminhando lentamente no mais profundo silencioso.

Luís Carlos Freire
Enviado por Luís Carlos Freire em 24/09/2023
Código do texto: T7893025
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