O milagre de Karina
Karina, há muito tempo, um tempo que ela nem sabia mais qual, seriam meses ou talvez anos? Não era capaz de mensurar mas sabia que havia se perdido de si mesma, de sua verdadeira essência.
Ela não encontrava mais sua real identidade,encontrava-se apagada, sem brilho e não havia batom que realçasse, pois o que havia sumido era o brilho interno, aquele que deixa os olhos acessos e as faces coradas.
Karina andava triste. Sentia que havia doado tudo de si e recebido tão pouco, isso fez com que ela esvaziasse, pelo menos era assim que ela sentia. Uma sensação tão ruim e triste essa, a de que a vida lhe deve algo, quase uma autopiedade e isso a fazia se sentir ainda mais para baixo.
Mas decidiu que não queria mais se sentir assim, ela sabia que havia uma força dentro dela e que não era justa a forma com que se tratava. Mas por onde começar, o que fazer?
Karina decidiu começar mudando seu estilo de roupa que já há um tempo escondia demais seu corpo. Cuidou das unhas, dos cabelos, comprou um novo sapato.
Na primeira vez que saiu com seu novo visual, percebeu olhares e sorrisos amistosos e isso fez com que tivesse autoconfiança. Mas ao longo do dia, no trabalho e com as pessoas próximas de seu convívio percebeu que os olhares não eram mais de admiração, o mesmo que percebia com os desconhecidos.
Ao chegar no escritório a primeira coisa que ouviu é que era para ter cuidado ao andar com aquele salto, pois ela não estava acostumada e podia se machucar. Falaram que suas unhas ainda estavam curtas demais para pintar e que as roupas coloridas não combinavam muito com ela. Que não adiantava nada uma roupa mais chamativa se ela continuava se encolhendo muito. Falaram também que ela estava acima do peso e era melhor que voltasse a vestir o preto, porque essa cor disfarçava mais.
Apesar de toda tristeza por todas as críticas que ouviu ao longo do dia, Karina reuniu um fiapo de esperança quando a dona Margarete da limpeza fez uma brincadeira e disse que o marido dela com certeza ficaria feliz ao vê-la assim. Para Karina, somente um elogio dele já mudaria seu dia. Antes de ir embora do escritório passou a última vez no banheiro, deu um sorriso bobo para o espelho e arriscou passar um batom vermelho.
Pegou sua bolsa, bateu ponto, viu as últimas caras fechadas do dia dando tchau entre os dentes, sabia que no outro dia encararia tudo de novo, mas nada mais importava agora. Ela só queria chegar em casa e mostrar ao seu marido a novidade, pois ela havia se arrumado quando ele já tinha ido para o trabalho.
Abriu a porta com o coração a mil, com os olhos quase marejados de tanta emoção que pulsava naquele momento. Ao chegar na sala ele estava deitado no chão com a cabeça encostada no sofá, e não fez menção de levantar a cabeça para vê-la. Ela pediu então que ele olhasse. Ao vê-la disparou com deboche:
- o que é isso, virou palhaçada agora?
Seus olhos que antes reluziam de emoção, estavam prestes a desaguar em choro sem fim. Mas ela sabia que não podia fazer isso, não na frente dele. Reuniu o pouco de forças que ainda tinha para chegar ao banheiro antes que a primeira lágrima rolasse. Quando já estava debaixo do chuveiro e a água salgada que transbordava dos seus olhos e misturava-se com espuma e a água que caia, ouviu de longe ele gritar:
amor, o que vai ter pra janta? Estou com fome!
Algo dentro dela gritou, basta!
A mudança externa feita no dia, era apenas um dos passos que devia dar. Ela sabia que o principal seria fazer as pazes com si mesma e que ela precisava se amar novamente, tanto, que fosse inadmissível alguém trata-la assim.
Lembrou que enquanto voltava para casa, ouviu uma música que tocava no modo aleatório da sua playlist e que dizia que "a cada milágrimas sai um milagre." E ela já havia perdido as contas de quantas milágrimas havia chorado.
Saiu do box, se arrumou como há muito também não fazia para ficar em casa, penteou os cabelos, passou um creme pelo seu corpo, lavou o rosto, colocou uma bela roupa para dormir. Quando abriu a porta estava perfumada e com os olhos tão acessos que seu marido espantou-se e ficou a encarando de uma forma que há muito tempo não fazia.
Ele estava espantado, confuso, admirado.
Ela decidida, renovada e forte.
Ele ainda não sabia, mas o milagre de Karina estava prestes a acontecer.
* o trecho da música citada é Milágrimas de Itamar Assumpção.