Por Caminhos Tortos
Nasci numa família de classe média. Uma classe média onde nunca faltou nada, mas nunca se teve em abundância. Estávamos sempre no limite entre o ter e o não ter.
O amor nunca faltou. Amor sempre teve em abundância.
Meus pais planejaram ter dois filhos, mas na falta de previdência tiveram quatro. Dois meninos e duas meninas. Eu sou a terceira.
Meus pais sempre disseram que podia nos faltar alguma coisa, mas que os estudos queriam nos dar o melhor que pudessem.
Desde cedo encantei com os médicos. Dizia que queria ser médica e me via como tal.
Meus pais riam. Diziam que talvez eu nunca pudesse realizar meu sonho.
Aos dezoito anos eu consegui passar nas provas para o curso de medicina em uma universidade pública. Meus pais se encheram de orgulho e eu de alegria.
Eu sabia que eles teriam que fazer um grande sacrifício para me manter na capital.
Eu tentava não pedir nada e muitas vezes fui dormir com fome.
Até que uma amiga disse que, linda como eu sempre fui, poderia ir trabalhar como acompanhante de milionários e executivos. Dizia que muitas garotas do interior que vinham estudar na capital faziam isso. Inclusive ela.
Sabia que meus pais teriam grande desgosto se soubessem que a filha tão amada se prestava a isso.
Depois de muita relutância eu me enveredei por esse caminho. Sabia que dava uma boa grana e eu poderia ter uma vida de conforto e não pesar no orçamento de meus pais.
Sentia mal em mentir pra eles. Dizia que estava fazendo estágio.
Rapidinho eu aprendi a frequentar restaurantes e lugares de luxo, a me vestir, me maquiar e me comportar nesses lugares.
Cerca de seis meses depois eu fui contratada por um cara de uns quarenta anos.
Era um homem elegante, bonito, charmoso, de extremo bom gosto e muito rico.
Ele era um tanto melancólico. Senti tristeza em seu olhar. Ria pouco e era de poucas palavras. Eu tentava puxar assunto e ele não rendia a conversa. Fiquei na minha.
Fomos para um hotel. Ele me olhava com admiração, mas sem muito entusiasmo. Apesar da falta de arrebatamento ele tinha uma pegada fantástica.
Dias depois ele me chamou novamente para sua companhia.
Ele estava com o olhar vazio. Já no hotel, abraçados na cama eu ousei perguntar porque ele era tão apático. Ele disse que não queria conversar. Eu fiquei na minha.
Enquanto, gentilmente, me levava para casa disse que queria me ver novamente.
No próximo encontro, durante o jantar ele me disse que pensava reiteradamente em suicídio. Que não sentia nenhuma alegria no seu viver, que a vida não tem nenhum sentido.
Eu fiquei sem saber o que dizer. Nunca tinha ouvido nada igual. Eu me senti assustada, mas ao mesmo tempo senti que precisava fazer alguma coisa, dizer alguma coisa. Eu com apenas vinte anos e cursando o sexto período de medicina me via nessa situação.
-O simples fato de você estar vivo e ter saúde não é um bom motivo pra ser feliz?
-E devia ser? Eu nunca tive vida própria. Meus pais nunca me deixaram fazer escolhas. Até a mulher com quem eu me casei eles escolheram. E foi um desastre porque não havia amor e sim interesse de nossas famílias.
-E por que aceitou se casar se não amava.
-Meus pais manipularam minha vida sempre.
-Cabia a você não aceitar ser manipulado.
-Talvez eu tenha sido fraco ou eles tenham sido bons manipuladores.
-Talvez eles pensassem que estavam fazendo o melhor pra você. Não acredito que um pai e uma mãe sejam cruéis propositalmente.
-Pode ser. Sou filho único e eles queriam o melhor pra mim, mas pra eles o melhor é ter muito dinheiro e juntar sempre mais.
-Seus pais ainda são vivos?
-Não.
-E por que você precisa continuar a obedecê-los?
-Você acha que eu faço isso?
-Não posso ter certeza pois mal te conheço. Mas pelo que fala, acho que sim.
-Talvez eu não saiba viver de outra forma e isso pesa tanto em mim que a única coisa que penso é em morrer e tirar esse fardo das minhas costas.
-Pra se desfazer desse fardo não é preciso morrer. Leve o fardo e deposite no túmulo deles e vá ser feliz.
-É tão fácil falar. Mas mudar é muito difícil.
-Procure ajuda profissional.
-Eu tenho medo de não saber viver de outra forma. Sabe eu amo teatro e sempre quis seguir uma carreira no teatro e não pude. Eles não me permitiram. Depois que eles morreram eu coloquei pra fora minhas inspirações. Escrevi um peça e financiei a montagem. Foi um retumbante fracasso, as críticas foram as piores e eu soube que talvez não tenha talento pra nada. Só pra dirigir meus negócios e ficar mais rico a cada dia. Mais rico e mais vazio.
-Mas você vai desistir no primeiro fracasso? Tente novamente. Busque inspiração e escreva outra peça. Quem sabe não será um sucesso?
-Eu tenho medo.
-O medo limita e te deixa mais vazio. Eu sou de família pobre, queria ter meu dinheiro, minha vida e quis fazer o que faço hoje. Tive muito medo, mas venci meus medos.
Ele riu:
-São coisas tão diferentes. Você é uma menina ainda.
-Em suas devidas proporções não são coisas tão diferentes.
Ele me abraçou:
-Eu preciso de ajuda.
-Como você disse eu sou uma menina. Você precisa de ajuda profissional.
-Fica ao meu lado. Sua juventude e jovialidade, sua alegria e entusiasmo me cativam.
-Eu sou estudante, faço o que faço por dinheiro. Não posso ficar com você.
-Eu dou tudo que você precisar.
-Você precisa de alguém que te ame e não de uma mulher que você paga pra ter.
-As mulheres se aproximam de mim por dinheiro.
-Eu também me aproximei de você por dinheiro. Você não se acha digno de ser amado por uma mulher? Você vai encontrar alguém que te ame de verdade.
-Desde que te vi eu senti que você poderia me ajudar.
-Não tenha tanta certeza.
Depois daquele encontro eu só pensava nele. Não sabia o que sentia. Se era compaixão, carinho, amizade. Sentia tesão por ele. Sentia vontade de encontrá-lo novamente.
E nos encontramos muitas outras vezes. Até que um dia meus pais me pegaram em um restaurante com ele, pois alguém contou pra eles sobre minhas atividades.
Eles já chegaram me puxando pelo braço, esbravejando e minha mãe chorava.
Ele calmamente se apresentou e disse pra eles que era meu namorado.
Contornada a situação ele nos levou pra casa.
Eu senti gratidão e amor pela atitude dele.
Começamos a namorar. Eu o incentivava a escrever, a se entregar ao teatro que era sua paixão. Nunca foi um sucesso estrondoso, mas se mostrou ao mundo.
Depois que me formei nos casamos.
Eu ensinei a ele que a vida não é só trabalho e dinheiro e ele me ensinou a ser uma profissional responsável.
Ensinei o sentido da vida e a beleza de viver plenamente. Ele me ensinou a viver com bom gosto e requinte.
Ele aprendeu a fazer escolhas sem pensar no que seus pais diriam.
Juntos abraçamos causas sociais e ajudamos muitas pessoas.
Aprendemos a dosar trabalho e lazer. Viajamos pelo mundo, nos divertimos, rimos e choramos juntos.
Vivemos intensamente e nos amamos loucamente.
Aprendemos o valor do amor e do respeito. Soubemos que fomos feitos um pro outro.
Sempre acreditei que o que tem que ser já está traçado e o acaso se encarrega de trazer a nós. E assim foi entre ele e eu. Por caminhos tortos entramos um na vida do outro…
(Obra de ficção e fantasia)