Falésia

Escalava o relevo. Passo após passo — largo por sinal — sem água ou comida. Continuava escalando. Entretanto as memórias corroíam sua consciência.

“Por que eu batia tanto nas crianças?”, e tropeçou em uma pedra. Nesse trecho a subida era por volta de trinta graus. “Batia por que mesmo?”.

Os passos eram largos e cansativos, mas era o que ele queria.

“Por que eu chantageava minha mulher?”, e bateu com a cabeça em um galho rígido, “chantageava pelo que mesmo?”.

Já estava na metade da subida. Apesar de cansado ele via isso como um fim para o cansaço de escalar e o cansaço da vida.

“Por que abandonei meu pai naquele asilo deplorável?”. “Na realidade, por que abandonei ele?”.

Embora fosse filho único ele poderia cuidar do pai debilitado. O cansaço de subir a montanha faz gradativamente ele esquecer os motivos de suas “atrocidades”.

A inclinação passou a ser de uns quarenta graus. O consumia cada vez mais o corpo dele, e o ódio dava espaço para isso.

“Por que não ajudei mamãe aquele dia?”, se questionou sem ar, pingando suor e tossindo seco.

Subiu tortuosamente o relevo por mais alguns instantes até chegar no topo. Era uma falésia, alta e de frente com o mar azul.

— Por que estou aqui mesmo? — se perguntou confuso. Sentou-se na beira do abismo, coçando o queixo e imaginando uma forma prática de descer dali.

Otacílio de Almeida
Enviado por Otacílio de Almeida em 17/09/2023
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