O CADÁVER DA NOIVA

 

 

Vai aqui relato de um episódio que aconteceu em nossa pacata Rio Claro, coisa de um mês e poucos dias, e está na boca do povo; é o assunto da conversa rio-clarense. E a senhora que bem conhece esse pedaço de chão e os costumes das gentes que por cá habitam, sabe bem o que estou a dizer. Motivos para delatar o ocorrido eram muitos. Recorri a dois deles, os quais andei tirando do fundo do baú, e que são, a bem vê, tão desnecessários quanto os outros – as horas vagas deste velho aposentado, que nada mais faz do que passar o tempo alcovitando a vida alheia; e a crença de que, conhecendo as boas famílias da cidade, seria de seu interesse o assunto. Pois bem, minha senhora, passo então ao fato, alertando-lhe de que não serei meticuloso, nem poderia sê-lo visto que dou conta aqui daquilo que ouvi de outras bocas, contado ao sabor do carteado e nas raras visitas que ainda faço a velhos amigos.

Tudo aconteceu quando dois molecotes de seus dez e onze anos, filhos do Alvarenga, se embrenharam num matagal, próximo da residência deles, com interesse de armar arapucas para captura de perdizes. O mais moço dos meninos ia à frente com um facão, abrindo caminho; e seu irmão, alguns passos atrás com as armadilhas. De repente, o da frente gritou com a voz hesitante: “Corre, Rodrigo! Vem ver, cara!” O de trás então, firmando os olhos na direção de seu companheiro e pressentido um vulto, indagou: “O que é isso?” O caçula, já tendo avançado mais alguns passos, e tendo uma visão mais nítida, gritou: “É uma noiva; tem véu e tudo!” Seu irmão então foi se achegando, indagativo, carregando no peito os cipós e os arranha-gatos: “Noiva?!” Por entre as folhagens e os galhos, estava um corpo vestido de branco. Os meninos tentaram se aproximar, mas o forte cheiro que recendia do local acabou por expulsá-los dali. Correram, e chegando à casa, o mais velho foi gritando, ofegante: “Mãe, mãe, o Junior achou uma noiva!”.

– Noiva?! – inquiriu a mãe dos meninos, interrogativa e surpresa.

– Sim, tem uma mulher vestida de noiva caída no mato. – explicou o mais velho.

– E vocês não a ajudaram? – perguntou a senhora Alvarenga.

– Não, a gente não conseguiu chegar perto dela, tá muito fedida! – disse o caçula.

– Vamos lá; quero ver que mulher é essa. – falou a mãe dos meninos, pegando pela mão do caçula e indo na direção do mato.

O mais velho dos garotos penetrou na trilha recém feita, sendo seguido pelos passos da mãe e do caçula. Conforme iam se aproximando do local começaram a sentir o ar pesado pelo mau cheiro, e a senhora Alvarenga indagou aos meninos o que era aquilo, quando um deles respondeu: “Vem de lá, mãe! Vem de lá!” O outro logo gritou, apontando na direção do corpo: “Ali, ali...” Vendo o corpo da mulher, a senhora Alvarenga deu mais uns passos à frente, afastando com as mãos os galhos de mato para chegar bem próximo. Depois, voltou-se para os meninos e disse, num tom assustado:

– Vamos filhos! Isso é caso de polícia. Ela está morta!

Chegando à casa novamente, a mãe dos meninos ligou para o destacamento policial e relatou a situação. Coisa de uns quarenta minutos mais tarde, à residência dos Alvarengas, chegou o aparato policial: viatura da Militar e da Civil e o rabecão. Os policiais foram guiados pelos meninos até a entrada da trilha, local onde se aglomeravam algumas pessoas que já haviam tomado conhecimento do fato e, aguçados pela curiosidade, buscavam saber mais detalhes. Dois dos policiais permaneceram na entrada da trilha para impedir que as pessoas adentrassem na mata enquanto os peritos trabalhavam; e o trabalho foi rápido. Minutos depois, o pessoal do rabecão, auxiliado por um policial militar e um perito, traziam o corpo numa maca de tábua, coberto por uma lona preta.

Já na delegacia, Jordão, uns dos peritos, olhando a moça de pele morena – embora já pálida –, cabelos compridos e encaracolados, enrolado no véu alvo, e aparentando uns vinte anos, desconfiou ser a moça Peixoto, visto que era amigo e frequentador daquela família. Amparado na desconfiança, ligou logo para a casa do amigo e solicitou dele o paradeiro da filha. A resposta do Senhor Antônio foi que a filha viajara à casa de uma tia, na capital do Estado, coisa de quatro dias atrás. Ouvindo o argumento do amigo, o perito dissimulou a conversa, desligou o telefone e falou para os companheiros do caso: “Esta menina é filha do Peixoto. Vou encontrá-lo agora mesmo!” Dizendo isto, foi bater na casa do amigo, e já o encontrou ressabiado, tanto pelo telefonema interrogativo quanto pela visita repentina.

– O que está acontecendo, Jordão? – perguntou o dono da casa, num tom ansioso.

– Peixoto, preciso que você me acompanhe até a delegacia; no caminho lhe explico. – O Jordão foi dizendo, meio evasivo.

– Espere um pouco; preciso pegar meus documentos. – Dizendo isso, entrou, pegou a carteira e gritou para a esposa que estava na cozinha: – Dalva, já volto!

Na ida para a delegacia o perito falou ao amigo de sua suspeita, tentando prepará-lo para o caso de uma confirmação. Quando chegaram, o Senhor Antônio Peixoto foi encaminhado a uma sala e um dos peritos lhe entregou uma folha de caderno dobrada, dizendo assim: “Este bilhete estava por dentro do vestido”. O pai abriu a folha e correu os olhos no manuscrito que dizia:

 

“Meus Queridos Pais,

Nada posso esperar do futuro, visto que toda a minha vida se fundamentava no amor que durante todo tempo dediquei ao Eduardo. Acreditei com entusiasmo nos juramentos que seus lábios me deram, selados com beijos ternos e calorosos. E por eles, criei expectativas e fui construindo o meu castelo. Mais do que isso, fui me entregando: corpo, carne, espírito e alma; dei-me por completa. Fiz-me em sonhos apenas; e nesses sonhos toda a realidade de minha vida.

Quis usar grinalda na igreja, e, num momento sublime, toda de branco, receber do Eduardo a confirmação do amor e da felicidade, na presença de todos os amigos, num beijo de sim. Mas, ele apenas falou, num gesto de adeus, que ele tinha outra família e que eu não o merecia, era o fim.

Perdoe-me pelo ato que tomo; nada mais posso fazer, pois já não encontro forças em meu ser que alente a vida. Todas as minhas forças falam de morte.

Perde-me Deus, pelo ato de desespero.

Joana.”

 

O Senhor Antônio, não conseguiu terminar a leitura do bilhete; reconhecendo a caligrafia da filha, caiu em pranto nos braços do amigo. Não teve força para olhar o cadáver; apenas foi informando que ela havia se enforcado com uma corda de nylon no interior de um capão de mato do outro lado da cidade, cerca de uns quatro dias, e que trajava um vestido de noiva.

Foi o próprio Jordão quem cuidou de todos os preparativos do velório e do sepultamento, sempre revezando com sua esposa a tarefa de confortar a família Peixoto, que ainda está inconformada com a perda da única filha. No dia seguinte, na Gazeta Rio-Clarense estava estampada a notícia: “O Cadáver da noiva”, com uma foto do local do suicídio, que o pessoal do jornal conseguiu na delegacia

Tenho comigo que a senhora não há de conhecer a família Alvarenga, por ser povo recente na cidade; mas já a família Peixoto, que são dos mais antigos dessas terras fluminenses, conhece com o requinte da amizade, que é gente distinta e de boa conversa. E tenho certo que seu coração tenha ficado triste, com o fim da moça Joana; como também, cá, eu fiquei.

 

Isaías Ramalho da Silva
Enviado por Isaías Ramalho da Silva em 13/09/2023
Reeditado em 09/10/2023
Código do texto: T7884782
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