Falésias

Dia primeiro de junho, quarta-feira, o ânimo do prelúdio de ano já extinguira-se completamente e o tempo principiava esfriar. Não havia mais a excitação pelo novo e o céu encontrava-se cada dia mais nublado. Foi nessa manhã que olhei no espelho do banheiro e me vi outra.

Os olhos, boca, nariz eram os mesmos, é verdade. Mas o tempo só me acrescentara coisas sem que eu houvesse solicitado ou reparado em meio à aceleração dos dias. Eu não me reconhecia diante daquela estranha me encarando diretamente nos olhos.

Aliás, menti.

Menti. Nem meus olhos eram mais os mesmos, estavam cansados e tristes, como se um abismo houvesse os tomado para si, engolindo-os. Os olhos deixaram de refletir o exterior, seu reflexo era apenas do completo vazio que apossara-se de mim ao longo dos anos. Eu não reconhecia mais aquela estranha e ela me encarava.

Acontece que fiquei hipnotizada com o reflexo naquele espelho manchado. Eu conseguia encontrar traços de quem um dia eu fora, mas, se olhasse bem, nada permanecera intocado, nem mesmo nariz e boca. Toda delicadeza evaporara. Me via como uma rocha imponente que sobrevive vertical às intempéries do mar bravio: permanente, dura, porém esculpida.

Liguei a torneira, fiz uma concha com as mãos e levei a água ao rosto para ver, em seguida, a estranha me encarando novamente. Ela levava a mão aos lábios e eu sabia que eles percorreram centenas de metros de peles, bebera de milhares de copos, tocara dezenas de lábios e proferira milhões de palavras. Lábios de mulher, lascívia escorria de um canto e ternura de outro. Lábios que, lentamente, muito lentamente, desidratavam, encolhiam, formavam-se veios. Lábios bem aproveitados.

Eu, falésia, encarava a estranha. E, nós, falésias, encarávamos o tempo. O mar nos açoitava, a estranha e eu. Não me sentia mais rocha permanente. Despida da coragem infantil… me via frágil. Eu, que achava-me forte por ter perdido as feições inocentes e delicadas, transmutando-me em uma figura dura e irreconhecível ao meu eu infante, aflitamente, constatava que, na verdade, estava mais frágil.

Se estava mais frágil, por que me sentia falsamente forte?

A pele ameaçando enrugar, o valioso colágeno esvaindo-se e, no entanto, eu me sentia satisfeita. O vazio dos meus olhos, as noites insones das minhas olheiras escurecidas e fundas, as rugas ao redor dos olhos acumulando sorrisos largos, as aflições depositadas entre as rugas da testa, os deliciosos cafés se revelando nos dentes amarelados, um corpo vivente. Constatar as mudanças me satisfazia. Me satisfazia e me assustava. Se eu mal me reconhecia hoje, o que esperar dos próximos anos?

Com surpresa, ao encarar a estranha meticulosamente, olhei para dentro dela e vi. Vi que as mudanças extrapolavam o exterior e entranhavam-se por dentro de nós. E as mudanças internas eram muito mais assustadoras. Superficialmente, vi que não gostava nem mesmo das mesmas coisas que gostava no ano anterior, que não me vestia mais como me vestia há dois anos e nem acreditava nos mesmos ideais que por muito tempo me guiaram. Eu era outra. E, se por um lado eu me via melhor, por outro, me via mais vil. É perigoso olhar para dentro.

Por isso, voltei-me novamente para fora.

Toquei meus cabelos compridos que haviam crescido muitos centímetros sem que eu me importasse com que crescessem. Analisei que sua textura havia encorpado e os fios brancos tomavam mais espaço entre os fios castanhos. A prova definitiva que o tempo me beijara. Senti, em meio a todas essas descobertas sobre a estranha, que eu havia despertado de um sono milenar. Um sono milenar onde me forçava a ignorar a passagem cruel e inevitável do tempo.

O soar dos sinos da catedral me despertava do transe enquanto anunciava o meio-dia. Atônita, me deva conta que perdera a hora do trabalho. Passara horas conhecendo uma nova mulher que eu era, que eu fora. Desesperei.

Angustiei-me profundamente com tantas mudanças enquanto eu permanecia cega diante de mim mesma. Angustiei-me completamente, completamente. Tudo isso acontecia diante dos meus olhos e, passiva, eu não reparara. Eu não reparara. Eu me deixava sem questionar e ia trabalhar, fazer compras, arrumar a casa… como se nada disso acontecesse diante dos meus olhos todos os dias, horas, minutos, segundos, estava acontecendo agora. Estava acontecendo agora! E nada eu podia fazer. Em um impulso, peguei a tesoura na segunda gaveta do armário e cortei meus cabelos. Ainda insatisfeita peguei a máquina e raspei-o completamente.

Acompanharia seu processo de crescimento. Todos os dias.

Passei o batom vermelho que ganhara natal passado e achara que nunca usaria.

Era outra novamente. Uma nova estranha. Não era mais a mesma que acordara e, passiva, encarara o espelho. Uma nova estranha para conhecer e reconhecer-se.

Frágil, a falésia arrebenta-se ao mar.

Suzane S Ângelo
Enviado por Suzane S Ângelo em 12/09/2023
Código do texto: T7883496
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