O esconjuro de Zuleika
Uma mulher pequenina, de aparência frágil, um tanto corcunda, de cabelos longos e brancos, cujas rugas denunciavam seus quase 80 anos de vida, cheios de sabedoria. Dona Zuleika morava sozinha numa casinha velha, pequena e simples, e seu nome era o primeiro a vir na mente de todos quando existia qualquer problema naquele vilarejo no meio do nada.
Doenças estranhas, partos, extração de dentes... Tudo muito complexo na Idade Média em terras que, hoje, conhecemos como parte da Europa. Mas para a velha Zuleika, profunda conhecedora da flora e fauna do lugar, eram coisas corriqueiras e perfeitamente possíveis de se resolver com a ajuda da natureza, preparando chás, unguentos. Curas mirabolantes demais para os descrentes.
Bastava alguém sofrer com fortes dores nas pernas, para que a curandeira fosse chamada e, rapidamente chegasse ao local, iniciando o tratamento com a aplicação de suas sanguessugas. Os pais, frequentemente, levavam os filhos para serem benzidos pela mulher e, entre tantas crianças que ajudou a nascer ou curar e acabou apadrinhando, estava o pequeno Tobias, que com pouco tempo de vida, passou a desenvolver pelos espessos e escuros por todo o corpo, sendo apelidado de menino lobo. Enquanto os supersticiosos temiam que o menino se tornasse um lobisomem ao crescer, Dona Zuleika, ao saber de sua condição, se prontificou a cuidar. E, durante sete dias seguidos, a velha benzeu o garotinho com água e alguns ramos de suas melhores ervas, enquanto entoava um cântico em tom de oração. Para espanto de todos, e alegria dos pais de Tobias, ao fim da semana, a criança estava curada! Os pelos já quase não apareciam em seu corpinho, voltara a engordar, cresceu e se tornou um homem saudável.
Por vezes, as benfeitorias de Dona Zuleika, traziam problemas para ela própria. Como a vez em que uma mulher de uma cidade próxima, trouxe uma peça de roupa da mãe para que a velha pudesse benzer a distância, visto que sua genitora estava com o corpo, atingido por lepra, debilitado demais para viajar. Zuleika não se intimidou e realizou o benzimento. No entanto, era necessário que a própria mulher doente fizesse uma entrega, numa noite de sexta-feira, de um prato de pipoca, à uma entidade para que trabalhasse em favor da cura. A adoentada não o fez, passaram-se semanas e a própria Zuleika foi acometida pelo mesmo mal. A lepra se manteve nos corpos das duas mulheres até que o ritual fosse cumprido e, ainda deixou suas marcas pelo corpo de Zuleika. Cicatrizes que a fariam lembrar para sempre do interesse humano em ser ajudado, sem que faça sua parte para obter resultados.
Esse fato marcou o vilarejo, Zuleika tornou-se uma mulher mais reclusa e passou a receber somente as pessoas que conhecia em sua casa. Com a diminuição do uso de suas plantas medicinais, algumas de suas ervas secaram e ela adotou um gato para manter os ratos afastados dos grãos e sementes que ainda mantinha.
Certa noite, alguns dos grãos que Zuleika armazenava, ficaram úmidos devido aos dias chuvosos que se seguiam, e germinaram. A experiente mulher, pensou rápido para salvar o máximo de seu material, então moeu grosseiramente em um pilão, os fungos do ambiente foram, naturalmente acrescentados, e a mistura fora colocada num grande barril com água e deixados para fermentar.
A bebida escura e forte criada por Zuleika, era oferecida àqueles moradores do povoado que vinham pedir por sua ajuda e promovia o relaxamento dos “pacientes” por seu teor inebriante, contribuindo e facilitando alguns dos tratamentos medicinais de Zuleika, que causavam mais dor. Era uma forma de anestesia, por assim dizer.
Zuleika que mantinha seu estoque de grãos de trigo, milho, centeio, malte e, principalmente, a cevada para tratar mulheres que desejavam engravidar, batizou a bebida de “cerevisia” palavra derivada de Ceres, em honra a deusa da colheita e da fertilidade, e “vis”, força em latim. Bem como, a variante de sua criação, destilada após a fermentação, foi chamada de “uisge beatha”, do Escocês “água da vida”. Não demorou para que suas invenções se tornassem populares e para que as pessoas a procurassem, tão somente, para consumir as deliciosas bebidas. Ao ponto de a mulher precisar aumentar sua manufatura, acelerando o processo usando caldeirões e avisando que o produto estava pronto, de maneira discreta posicionando uma vassoura, inocentemente, à porta de entrada de sua casa.
As pessoas lhe pagavam com velas, alimentos para manter a si e a seu gato de companhia, e grãos de todos os tipos para que pudesse prosseguir com as produções. E, aos mais interessados, Zuleika ensinava suas receitas, cuidadosamente escritas num grande livro, para que, mesmo com sua inevitável e imprevisível morte, suas invenções pudessem continuar pelas próximas gerações.
As suspeitas e intimidações de alguns diante dos grandes feitos de Zuleika, levavam esses a acreditar em poderes sobrenaturais, ocultismo e diziam até que suas bebidas trariam desgraça aos povos, por seu poder intoxicante. Tais relatos chamaram a atenção da Igreja que submeteram Zuleika a um julgamento, sem que sequer soubesse o motivo pelo qual estava sendo perseguida pela Santa Inquisição. Sem possibilidade de defesa, ela acabou por confessar seus crimes, após sessões intermináveis de tortura.
Zuleika foi condenada por bruxaria, à morte na fogueira em praça pública. E, naquele exato momento, a velha fez jus à fama que a levará até ali e rogou uma praga: todo aquele que consumisse suas invenções em excesso, sofreria com uma doença crônica cujos sintomas seriam atormentadores... De vômitos e perda de cabelo a dores e pele amarelada, a cirrose o acompanharia até a morte. E ainda assim, os que mais a temiam, jogavam litros e litros de suas bebidas fazendo as labaredas do fogo aumentarem potencialmente e consumirem todo o seu corpo.
Muitas das mulheres que aprenderam e reproduziam suas receitas, tiveram o mesmo destino. Enquanto os homens, queimaram os livros de receitas de suas esposas, aprimoraram as bebidas e lucraram quantias exorbitantes com as vendas das hoje conhecidas como cerveja e whisky, sucessos de consumo.