A descoberta na rua Sarmento 646

Ela, Mariza, 64 anos, confeiteira aposentada, solteira, sem filhos, órfã de pai e mãe, amante dos animais e residente na rua Sarmento, 646.

Ele, Pedro, 42 anos, pedreiro, solteiro, o filho mais novo de dona Iracema, a mais conhecida mãe de santo do bairro e residente com ela na rua Pará, 735.

Viviam solitários e abarrotados de medos e, para desviar as indagações da vizinhança, rareavam cada vez mais a vivência da vida. Visto de fora, um parecia estar na mesma condição no Oiapoque e o outro no Chuí, não fosse a fuga de Bono Vox, o cachorro mais velho de Mariza ter fugido e procurado abrigo em frente ao terreiro de umbanda de dona Iracema.

Naquela tarde fria de outono, ao cair da noite, Pedro, ao chegar em casa trôpego pelo efeito do cansaço, foi calorosamente recebido por Bono, pulando ao seu redor com tamanha desenvoltura que o deixou desconcertado. Ele não mais reconhecia sinais de alegria. Mesmo com muita fome, decidiu sentar-se na sarjeta para aninhar-se ao amigo, visivelmente ansioso. Já eram amigos. Sempre interagiam quando Pedro passava diariamente em frente à casa de Mariza rumo ao ponto de ônibus, um trecho triste, esburacado e sem cores nas casas geminadas. Bono latia e demonstrava satisfação. Pedro retribuía com batidas na grade que circundava o jardim, totalmente oxidada.

Mariza, desde a aposentadoria, vivia em desencanto e, nesse desencanto, esqueceu que tudo na vida precisava de algum reparo. Ela própria precisava de reparo. Seus 64 anos tornaram-a tão pesada que transformou-se em uma mulher decrépita. Olhar baixo, pele enrugada, mãos calejadas e roupas surradas. Literalmente vivia o dia completamente reclusa.

Pois foi naquele tarde mesmo que Pedro decidiu enfrentar a dona de Bono, que desconhecia, mesmo sendo vizinha.

Tomou com cuidado o cachorro em seus braços e, mesmo com a fome aumentando com o tempo e tropeçando por entre os paralelepípedos, tocou a campainha na casa de número 646. Imediatamente Mariza apareceu e, com olhar de espanto, tomou bruscamente o Bono dos seus braços. Levantou os olhos, fixou seu olhar no de Pedro e, muito sem jeito, convidou-o a entrar.

Acabara de passar um café coado e, com ele, serviu à Pedro algumas broas de polvilho feitas do forno de barro no dia anterior. Era a única forma de retribuição disponível no momento. Enquanto ele comia ela o sorvia com os olhos. Satisfeito, pediu licença à Mariza e aninhou-se em uma poltrona velha, coberta por uma manta de crochê colorida. Aos seus pés, Bono reclamava por carinho. Por alí ficou.

Meses depois dona Iracema foi abordada por alguns comparsas do terreiro questionando sobre a ausência do seu filho. A resposta, com voz embargada, sentenciou: “agora reside na Sarmento 646, não sei porquê”.

Conto escrito para a Antologia desAmor da Pragmatha Editora

03/09/2023

Rosalva
Enviado por Rosalva em 03/09/2023
Reeditado em 03/09/2023
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