TUDO POR CAUSA DE UM VEADINHO
Assim passavam os dias, os meses e os anos. No escritório era a mesmice de sempre: fofocas, fuxicos, intrigas dos funcionários mais antigos com o chefe e Dona Silvia, uma secretária quase sexagenária, que nunca teve filho algum e que, durante todo o ano, sentava em sua poltrona acolchoada e ditava as normas de conduta da empresa.
Dona Silvia casou tarde, já nos seus quarenta anos. Conheceu um homem mais novo divorciado com dois filhos e foi neles que ela ancorou suas emoções. Vivia contando como que cozinhou tal e tal comida para o maridão, que presente comprou para o Dia dos Pais, o cruzeiro que pagava para umas curtas férias de dez dias em alto mar. Sua voz era lerda por causa da língua presa que certamente atrapalhava o seu modo de pensar — estava sempre atrasada com as notícias e, quando a ficha caía, dava uma risadinha nervosa, quase histérica, como que afirmando que conseguiu acompanhar o pensamento do mundo. Eficiente ela era! Sem sombra de dúvida muito eficiente além de pontual, e fazia questão de afirmar que era justa. Todos a achavam Caxias demais em meio da desorganização da empresa.
Assim passavam os meses, já falei antes, com a monotonia de Dona Silvia querendo impor seus valores sóbrios, sérios e sombrios num dia-a-dia que parecia não ter fim. De segunda a sexta tudo se repetia por igual: ela controlava o ponto, controlava a requisição de material, controlava os dias de férias e controlava a vida de todos, sempre com sua risadinha retardatária que mais parecia um eco de algum sino de uma igreja distante. Nessa hora ela colocava a mão na boca como para querer conter o riso ou talvez para esconder os dentes recapeados feito por um dentista de subúrbio que lhe cobrou o olho da cara e resultou num trabalho de terceira categoria.
Mas tudo mudava na época de Natal. Dona Silvia era louca pela festa de Natal. Dois ou três meses antes da festa ela já começava a falar da árvore de Natal, de como seria o amigo secreto, da decoração que ela faria no escritório, da festa em si e das comidas que cada um deveria trazer para alegrar talvez o único dia de sua sincera felicidade. Depois da festa, a certeza da depressão era seguida com toda a rabugice que estampava no rosto quando já estava limpando as mesas, enquanto a festa ainda rolava para alegria de todos. Era impressionante a mudança brusca: minutos antes ela estava a sorrir para todos, a beber do copo de todos, a dançar com o chefe ou com o mensageiro, com o motorista ou com o vigia numa igualdade camarada. Logo que percebia que o limite da festa havia chegado, tudo acaba sem aviso e ela se movia como uma dona de casa a limpar tudo, a jogar as coisas num saco grande de plástico como que não quisesse deixar vestígio do acontecido. Na hora certa a festa acabava. Tudo ficava guardado somente na lembrança de uma câmera fotográfica. Uma semana mais tarde ela aparecia com as fotos que eram mostradas uma vez somente e depois desapareciam num álbum esquecido.
Assim eram todos os anos no escritório. Os dias passavam preguiçosos e monótonos até chegar o Natal com a festa organizada por Dona Silvia.
Este ano foi diferente. Ela organizou tudo como nos anos anteriores: a decoração, o sorteio do amigo oculto, o valor estipulado para os presentes, a escolha do dia da festa, as comidas que cada um traria. Tudo estava correndo como sempre até que chegou uma cesta de Natal oferecida para os funcionários por um cliente generoso. A cesta foi aberta antes do dia da festa contra a vontade da eficiente secretária. O chefe achou melhor abrir, desenrolar todo o papel e embalagem para ver o que continha na cesta tão bem arrumada. Obedeceu ao chefe cegamente como sempre fazia com qualquer de suas decisões, certas ou não.
Chocolates, castanhas, uma garrafa de vinho, bombons, um Papai Noel de chocolate puxado por um veadinho feito de biscoito com sabor de gengibre. Dona Silvia fez "Caras e Bocas" quando o chefe tirava cada produto de dentro da cesta, mas seus olhos brilharam quando ele, com um riso meio sarcástico, tirou o Papai Noel com o seu veadinho. Mas ela exultou não com o Papai Noel, o qual achou feio, gordo e com uma cara muito sacana, e sim com o veadinho marrom, coberto de enfeites verdes e brancos. Emocionada, exclamou dentro de todo silêncio:
— Que veadinho lindo!
O pequeno objeto foi logo adotado pela velha secretária que o pegou com carinho e o colocou numa estante em destaque. Nos dias subseqüentes, no seu rodopiar diário pelo escritório, ela sempre estava a olhar para o animalzinho não se sabia se por adoração, amor ou gula.
Tudo foi diferente este ano, como falei antes, pois, dois dias antes da festa quando Dona Silvia chegou ao escritório antes de todos; um grito de dor feriu-lhe a alma: o veadinho havia desaparecido da estante! Ela virou todo o escritório e não achou o pequeno animal e todos foram ouvindo as indiretas à medida que iam chegando. Com a cara amarrada ela queria saber quem havia escondido e se alguém teve o atrevimento de comer o veadinho.
Assim ela nada fez durante todo o dia. Não conseguia se concentrar pensando e imaginando se o chefe, o contador, o faxineiro, o vigia, alguma escriturária sirigaita ou quem quer que fosse que teve a petulância de se apossar de um veadinho com cara de "meio-siri meio-sereia" quase às vésperas da festa que a fazia sentir mais feliz. Ficava a olhar com raiva a cara de cada um, imaginando se alguém já se atrevera a comer os pequenos chifres, o focinho sorridente, o rabinho, as patinhas ou a barriguinha do biscoito em forma do pequeno animal amigo de Papai Noel.
Na véspera da esperada festa, Dona Silvia convocou uma reunião de emergência para um aviso breve, sumário e triste:
— A festa de Natal foi cancelada.