A MATRIARCA II

Meu avô paterno era um canalha . Tinha o nome de José Guilherme . No tempo da escravidão ele e família era escravagista e tinha fazendas de bovinos, ovinos e caprinos . As fazendas deste velho ficavam no alto sertão paraibano onde hoje fica a cidade de Cajazeiras passavam de pai para filho desde a invasão europeia às terras tupiniquins . Uma grande parte da cidade de Cajazeiras foi formada pelas antigas terras das fazendas do meu avô. Como aconteceu isto se hoje estou pobre e não tenho nada ? Bom , o pilantra vilipendiava a honra de todas as moças filhas dos seus empregados . Era casado e vivia fazendo filhos nas filhas alheias e os pais não podiam reclamar porque era morte certa . Se a moça não cuidasse ele mandava abortar e em casa vivia um casamento de fachada com uma descendente de franceses . Tinha filhos legítimos os quais colocava para correr quem chegasse reclamando de pensão alimentícia ou paternidade .

Antes da Princesa Isabel promulgar a Lei Áurea em 1888 , esse vagabundo casava e batizava com os negros e negras . Depois da promulgação da lei , os negros desapareceram das suas terras , pois ele era obrigado a soltá-los ou matá-los para que não denunciassem as maldades daquela quadrilha que não era uma família . Assim , o facínora começou a contratar os pobres sertanejos para trabalharem nas suas terras dando-lhes casa e um pedaço de terra pra trabalhar e cuidar dos seus rebanhos . A pressão da família meliante sobre os trabalhadores era justa e injusta : se o trabalhador negligenciasse no trato dos animais aos quais estavam aos seus cuidados era colocado para fora das terras sem direito a nada,porém se fosse bom trabalhador ficaria por lá .

A intenção do seu José Guilherme e dos filhos , claro, era sempre a mesma : de seviciar-se das donzelas e fazer o aborto do rebento ou o aborto da vida da donzela . Os pais não podiam fazer nada , porque estavam morando nas terras do homem e assim com o passar dos anos , esses moradores ultrajados foram permanecendo no local tornando-se dono por direito moral daquelas moradias , formando assim um povoado e depois uma cidade. Esses canalhas vinham perdendo terras desde antes da libertação dos escravos ,mas ainda agiam como se estivessem na época da escravidão prendendo negros , pobres e nativos e os escravizando .

Havia uma revolta social naquela época como há hoje em dia contra os roubos e arroubos da classe social dominante. Corria pelas salas das várias cortes de justiça denúncias sobre abuso de poder e de autoridade por parte desses antigos senhores escravagistas e políticos da época que na verdade era os antigos senhores de escravos . Meu avô era um dos que estavam com a cabeça na guilhotina, porque haviam centenas de denúncias contra sua família, inclusive, havia processos contra a esposa verdadeira do meliante que não gostava de pobres e açoitava os negros e pobres e,tinha nojo dos indígenas e quem se metesse no caminho da sua família era açoitado ,quando não, pagava-se para executá-los . Para ela, a união com um facínora daqueles era o casamento perfeito.

A minha avó foi uma dessas moças ultrajada e maltratada por esta família de cobras . O pior era que ela tinha sido raptada da casa da sua mãe pelo José Guilherme , meu avô . A história foi mais ou menos dessa forma como lhes contarei de acordo com as conversas da minha querida vovó.

Tetê já nasceu com o signo do azar ,pois era uma menina pobre de descendência negra e indígena. Naquela época, e hoje também , são cidadãos de segunda classe de acordo com os preconceitos raciais que são velados e hipócritas no Brasil . Mas, ela tinha a coragem e a valentia dos grandes guerreiros Tupinambás , a resistência dos africanos e a graça e beleza da verdadeira brasileira . A pele era de um tom escuro-aveludado ; os olhos da cor de mel de italiana ; o Cabelo liso e negro como a noite ; lábios carnudos como uma deusa da mais alta casta africana.

Sua mãe, negra ,havia fugido do cativeiro na região do brejo e se embrenhara mata a dentro chegando numa das milhares de aldeias Tupinambás , povo feroz que tinha a fama do canibalismo que haviam naquela região nordestina . Foi presa pelos nativos ferozes e adotada por um dos chefes para ser criada deste , pois o verdadeiro inimigo do nativo na verdade era o branco invasor ,foi por isso que ela salvou-se . Daí para a frente ,foi mulher de um dos nativos e teve vários filhos ,pois era mulher parideira , aprendeu a arte da medicina com grandes pajés e curava as doenças dos guerreiros , dos aventureiros e dos bandoleiros que andavam à procura do dinheiro, do ouro e das pedras preciosas. Tornou-se muito conhecida quando juntou as medicinas africana e nativa e a religião africana ganhando a vida com isto . Era , mãe de santo curandeira.

Naquela época, no fim do século atrasado , a Lei Áurea não era respeitada como deveria ser pelos antigos escravagistas e esses agiam como se ainda fossem senhores dos negros . Muitos Quilombos foram se formando e agregando gente para combater esses perversos senhores brancos . Os nativos, os quais chamavam de indígenas, eram acolhidos nesses povoados e os brancos eram rechaçados se tivessem a audácia de se aventurarem nas suas perversidades . Quer dizer : negros e nativos somavam forças contra o branco invasor e cruel . Lembrem – se de que o branco era inimigo comum de nativos e negros . Foi num desses quilombos que a mãe da minha avó , Mãe Júlia , conseguiu se agregar com seu marido Tupinambá e viver por algum tempo . Em 1903 nasceu a minha avó fruto dessa união . Tempos mais tarde meu bisavô Tupinambá foi assassinado pela polícia na cidade de Cuité entre Paraiba e Rio Grande do Norte e minha bisavó ficou com 11 filhos , a maioria mulher. Não temos o nome de todas de memória ,mas naquela época era comum a morte de criancinhas por inanição que o povo chamava de “ anjinhos “ e morreram muitas quase todas . Sobraram poucas crianças e a minha avó foi uma dessas crianças . Umas ficaram na aldeia criadas pelos avós nativos e a minha avó ficou com minha bisavó . O Nordeste é terra de gente forte , a própria região com suas durezas escolhe o mais forte .

Mãe Júlia decidiu sair do agreste , da região do curimataú, para o litoral e começou a caminhar no meio da seca de 1915 com o que sobrou . Era guerreira e tinha a valentia dos Wambesis , povo africano senhores da guerra . Conhecia todas as árvores e todos os modos de sobrevivência no meio do solo esturricado . Se embrenhou no meio da caatinga com a filha e vieram sair em Sapé já na zona da mata paraibana com os pés estropiados e a esperança nos olhos . Nessa época minha avó , Tetê , tinha de 11 para 12 anos e era uma mulata muito linda,pena que era por demais raquítica por falta de uma alimentação adequada ; era uma jóia de menina , sim senhor .

Instalaram-se na região do Entroncamento ,antes da cidade de Santa Rita que naquela época tinha um território maior do que o de hoje . ali, havia um quilombo e mais para dentro da mata fechada uma aldeia Tabajara . Era um local adequado , perto da estrada principal onde os viajantes passavam e requisitavam os trabalhos de curanderia da Mãe Júlia ; outros vinham no pé do ouvido para fazer trabalhos de bruxarias e foi que numa vez apareceram uns homens com outro homem quase morto de doença contraída no mato . vieram a mandado de pessoas que já ouvia falar da bruxa Mãe Júlia . Era o filho mais velho do velho José Guilherme que tinha contraído malária e teria que ficar acamado por uns dias até se recuperar. Todos tinham medo e respeito pela senhora que ainda não havia chegado aos quarenta, mas tinha uma aparência de sessenta devido a vida tão sofrida . Se ela levasse os olhares para o olhar de alguém este imediatamente sentiria um arrepio e com certeza baixaria os olhos para não ter que encará-la ,por isso o velho sentou-se à sombra de um juazeiro do lado de fora da casa e junto com os outros começaram a conversar sobre seus planos .

Tinham vindo no encalço de um fugitivo que os delataria no tribunal de júri e a informação era que este estaria nesta localidade por nome de Entroncamento ou na cidade de Santa Rita onde haviam vários quilombos no meio das matas virgens e canaviais . Os crimes desse facínora eram vários e difícil de enumerar .

Tetê era como animal selvagem que ao ver gente corria para se esconder e foi assim com esses estranhos e deixou sua mãe tratar do assunto . O filho mais velho do José Guilherme ficou deitado numas esteiras num canto da parede de taipa ,tremendo de febre e tendo visões que só ele via . A velha foi ao mato retirar umas raízes e folhas para curar o enfermo e demoraria . Tetê ficava nas moitas escondidas vendo de longe o que se passava e não sabia ela que esses caras onde chegavam deixava alguém na dianteira e na traseira para não serem pegos na surpresa . Foi quando o homem que havia ficado de guarda na traseira vinha chegando e viu a menina de cócoras por trás de uma moita de espinhos observando os estranhos e pé ante pé sem que a garota percebesse o marginal a colheu pelos braços e sorrindo falou:

--- Olha o que eu encontrei ali detrás da moita . Tetê esperneava e mordia e dava tapas mas era inútil .

O Velho mandou que o jagunço a soltasse pois haviam outros assuntos a tratarem e seu filho teria que se recuperar .

O vagabundo soltou a menina e ela desapareceu por dentro dos matos e desta vez ninguém a acharia. Mas o velho achou a mulatinha muito linda e começou a engendrar planos de conquista da criança ,pois não queria morrer vítima de uma praga ou de uma bruxaria . deixa o tempo correr...

Mãe Júlia , neste momento, tinha chegado à frente destes homens maus sem ninguém ver ou perceber e com o olhar fuzilando o velho o qual baixou a cabeça e até se perdeu nos pensamentos engendrados perguntou de cabeça baixa à senhora :

--- O rapaz ficará bom quando ? Temos pressa para chegar ao sertão.

A senhora que sabia de tudo correu os olhos pelos arredores , mirou o jagunço que havia pego a Tetê , Falou:

--- Não será possível caminhar ,pois todos vêm do mesmo lugar e contraíram a mesma doença que o branco lá dentro . Eu nem preciso pedir que respeitem a minha casa porque ela será de vosmecê por um longo período . Se vosmecê não me ajudarem a ajudar vosmecê ,irão perecer como os macacos perecem e caem das árvores feito gafanhotos sobre o milharal e terminam de barriga estufada sem poder voar perecendo ao Sol do meio-dia . A partir de agora armem suas tendas fora da minha casa e ficará só aquele que já está . Quem for contrário a essas ordens será sacrificado e perderá a vida . Essas ordens são para que os mosquitos não piquem quem está doente e transmita para quem está são ... outro aviso : não brinquem com minha família e nem cheguem perto . Estou de olho em vosmecê .

A Senhora misteriosa falou essas palavras e se mandou por entre as folhagens sem deixar pegadas como se fosse uma ventania que desaparece ao acaso .

Vosmecê viram os olhos da bruxa ? Perguntou um dos facínoras aos outros e todos estavam estupefatos e na vontade de darem no pé das redondezas ,mas o velho falou :

--- Ela tem razão e vamos obedecer até o José ficar bom . Armem as tendas numa distância adequada da casa da velha e façam uma fogueira bem grande . Ventania , depois da ceia vá para a vigia na entrada da estrada e vosmecê , seu Pai Véi , monte guarda a um quilômetro `a leste na estrada e o Carcará ficará a um quilômetro à norte na estrada e assim cobriremos entrada e saída dessa arapuca . Olho aberto , cambada . Qualquer movimento por parte da negraiada enquadrem e avisem que iremos socorrer .

O nome do negro o qual era procurado pelo velho José Guilherme era Benedito e tinha realmente vindo se esconder no quilombo Entroncamento, perto da casa da Mãe Júlia e a nossa matriarca já sabia da história mesmo antes dos visitantes chegarem às redondezas . Ela sabia que um negro fugitivo viria para o povoado e com ele viria a morte e a desgraça para o povoado,porém ela deveria ser cautelosa e orar para os bons espíritos ,na maneira dela, se compadecerem dessas almas pecaminosas . Tudo deveria ficar dessa forma até eles ficarem bons e irem embora dali.

Amanheceu e o velho José Guilherme começou a sentir o corpo moído e consumido pela febre . Levantou a cabeça e teve uma vertigem . Chamou pelo João Guilherme , seu menino mais novo e não menos mais bandido :

--- Olha aqui meu rapaz, estou com a tal febre e passando mal e preciso de ajuda . vosmecê será o comandante de agora por diante . Por favor ,vá a casa da bruxa e diga que também arriei. Quero urgentemente ajuda dela .

Meia –hora depois chegam Ventania e Pai Véi entregando o relatório da noite de vigília e com as caras coradas como quem estava se consumindo em uma fornalha :

--- Chefe , está tudo na tranquilidade ,mas estou muito ruim . Passei a noite toda tendo visões e vi uma procissão caminhando pelos arredores . Levavam velas acesas e pediam ajuda à nossa senhora e às almas dos antepassados . Trepei em riba da árvore e fiquei olhando aquela arrumação até dobrar na curva que vai para o Norte . Ventania dá seu relatório oral e desaba sobre uns cascalhos no aceiro do mato . Aproveita a maciez de uma moita e coloca a cabeça sobre .

Pai Véi , nem falou nada e quando Ventania abordou sobre a procissão disse que não tinha visto nada . Foi se acocorando encostado a um juazeiro e ali ficou com o olhar branco e a testa fumegante .

O jagunço cascavel que havia segurado Tetê pela cintura nem se levantou , estava deitado de forma a se aparentar com um feto na barriga da mãe tiritando de frio e estavam todos muito ruins , menos o João Guilherme que não havia se embrenhado na mata com o restante do grupo no encalço do Benedito. Ao todo eram oito sem contar com os chefes .

João Guilherme foi chamar a Mãe Júlia para transmitir as ordens do pai e ao chegar na porta da casa a senhora vinha saindo com uns preparados de Artemisia annua ( erva –de-fogo ) com capeba , boldo e picão . Um preparado que tinha conhecimentos da medicina africana e nativa brasileira . Era um caldeirão preto cheio de chá dessas plantas ,ainda fervendo .

A Mãe Júlia pede que o rapaz desnude a todos e dê um banho de quinze minutos em cada um ,depois sirva uma caneca daquele preparado ainda quente para cada um . Ainda ordenou que cobrisse a todos com os cobertores mais quentes possíveis . Ela iria fazer um caldo de caridade com bastante pimenta para ver se eles se levantaria com uma semana . Teriam que continuar durante um ano com o tratamento sem beber bebida alcóolica ou comer comida remosa para ficarem totalmente bons . Se não fizessem como ela estava ordenando pereceriam com câncer de fígado ou com o baço estourado e sangrando . seria uma morte dolorosa. Sentenciou a senhora bruxa querendo que aquelas pessoas fossem embora o quanto antes dali .

Passou-se o dia e a cambada de malfeitores pego pelo Anopheles ou muriçoca ,ou bicuda , ou carapanã estava bem mal se contorcendo sobre a relva ora espinhosa ora cortante e tendo visões que só eles viam . A suadeira era geral e João Guilherme corria para um e para outro a tentar socorrer , mas não saia dos pés do pai que de vez em quando voltava à realidade e perguntava como era que as coisas estavam . João Guilherme dizia que tudo estava sobre controle , mas sentia um terror medonho ao chegar perto da Mãe Júlia, pois parecia que ela estava em toda a parte e em lugar nenhum . De repente , na boca da noite , aparece Tetê com o mesmo velho caldeirão cheio de chá com as mesmas ordens para o João Guilherme de desnudar a todos e banhá-los por quinze minutos depois beberiam o chá que em três dias daria para montar e seguir em frente .

--- Mainha , diz que não tem muita coisa para cear e só teremos beju com café . Ela está preparando . Amanhã já não teremos mais comida para servir que são muitos e vosmecê devem ficar forte para que a doença não tome conta das almas de vosmecê.

João fala para o pai que devem comprar comida no dia seguinte quando este tem uma volta à lucidez e, o Guilherme pai faz sinal de positivo . Diz para levar quatro cavalos e compre um saco de farinha , vinte quilos de carne seca , um saco de feijão, frutas e vegetais e café . O dinheiro está no alforje . Peça para a bruxa ir com vosmecê. Não confio ficar aqui sozinho não.

Neste mesmo momento aparece a Mãe Júlia com uma bacia cheia de bejus e alguns quando viram a comida começaram a ter náuseas e ânsia de vômitos ,mas o velho pai e chefe da quadrilha ordenou que queria ver todo mundo em pé no outro dia . A bandidada tiritando de febre começou a enfiar o beju de goela a baixo para ficar forte . Tomaram cada um ,um dedo de café porque já não havia mais pó . Estava escuro feito breu e todos se acomodaram para passar a noite mais uma vez naquele lugar fantasmagórico em que as noites são mais buliçosas do que os dias que são muito tranquilos .Mãe Julia pede para João Guilherme retirar os doentes daquele local , pois naquela noite viria alguém com a polícia que era inimigo deles em busca de todos . Estavam em perigo . colocasse os cavalos numa caverna que havia numa das ribanceiras do riacho , mais abaixo no meio da mata e se avexasse que estavam chegando . Ficassem aquela noite por lá que era mais seguro.Então, ela diz :

---- Não posso sair daqui da minha casa para o povoado . O povo não gosta de mim e não vou com suncê para lugar nenhum .

João Guilherme fica sem entender como é que a velha sabe de tantas coisas sem estar perto quando se fala . Fica pensativo e surpreso quando ela lhe responde :

--- São os espíritos , filhos . Se avexe !

Pegou os cavalos pelas cordas e levou-os para a caverna que a bruxa tinha indicado e que não era exatamente uma caverna . Era uma reentrância nuns lajedos que dava para passar uma boa chuva . Todos acomodados , ele ficou à espreita à beira da mata para ver quem era e se surpreendeu quando viu o negro que estavam procurando junto com um fazendeiro da cidade de Souza no alto sertão e outros indivíduos que não conhecia mas pareciam ser da polícia. Foi se esgueirando pelos matos e chegando onde estavam todos foi caminhando riacho acima , entrando mais no mato e , tudo isso feito em total silêncio que seria morte certa se ouvissem . João Guilherme andou com os cavalos e os doentes montados nesses cai mais não cai por dois quilômetros riacho acima e viu outra reentrância nos lajedos onde se acomodaram . Passou-se a noite e ao raiar do Sol , com o dia ainda pardo ,João Guilherme volta à espreitar a casa da Mãe Júlia esperando o tão afamado chá para curar seus companheiros e ao chegar no local onde estivera na noite passada viu um vulto negro chegando como se fosse o vento e era a Mãe Júlia que vinha com o tal caldeirão cheio daquele chá milagroso . Mãe Júlia diz :

--- Volte com o caldeirão e faça a mesma coisa que antes : dê o banho e o chá . não chegue perto da casa que os visitantes estão dormindo e vão dormir até Olorum desencantá-los do sono profundo ... Uma coisa ,menino , suncê não é igual aos outros . Mãe preta vê no seu coração . Não caminhe por essa estrada . Tome outro rumo que suncê merece ... Não temos comida hoje ,mas amanhã é necessário a partida de vosmecê . A caça de paca por essas bandas está muito fácil. Deixou o caldeirão no chão e desapareceu por trás de uma moita sem deixar rastros.

O rapaz quando viu a mulher desaparecer sentiu um alívio daqueles . Pegou o caldeirão e desapareceu riacho acima .

Era a época das chuvas no Nordeste . Lá só existem duas estações : chuva e Sol e muita quentura. Estava caindo uma chuvinha fina sobre as folhagens e os pingos que caiam das folhas batiam no chão como se fossem o martelo de Ogun na peleja da guerra . João Guilherme tinha caçado uma paca ,ou melhor, a paca tinha se deixado caçar e a estava assando sobre uma grande fogueira protegida pelos lajedos como se fosse um porco e ouviu uma voz fraca dizendo;

--- Não para de chover!? Era o José Guilherme filho que tinha ficado sentado encostado às pedras . Essa paca está muito cheirosa . Vosmecê pode me dar um naco? João olhou para o irmão radiante de alegria e mais que depressa cortou um pedaço da carne para o irmão , perguntou :

--- Vosmecê está melhor,irmão ? Já dá para montar?

Ele assente com a cabeça levando o pedaço de carne à boca comendo com muita vontade e a doença havia cedido um pouco no Guilherme filho . Os outros ainda estavam muito ruins e tiritavam de frio como se estivessem no polo Sul . Todos tinham perecido diante do mortal mosquito e estavam perto , muito perto da grande fogueira que espantava os mosquitos e aquecia a todos .

João retirava os nacos de carne e colocava na boca dos doentes . Uns comiam e outros vomitavam como se fosse urubu quando se passa perto perfumado . O velho José sentiu o cheiro de carne e comeu com sofreguidão aquele pedaço , daí vomitou . Seu fígado ainda não estava operando como deveria .

Bom , João foi novamente à noite pegar o caldeirão cheio de chá e quando acabava ele o devolvia à bruxa , pois toda bruxa precisa do seu caldeirão , pensava ele . Não podia deixar os doentes para ir comprar mantimentos e assim passou-se os três dias de praxe da febre da temida doença . Foram ficando sentados e depois foram-se aventurando com as montarias.

O velho José Guilherme quando pode se montar foi logo dando ordens para todos irem à longínqua cidade no fim do estado da Paraiba e mais que depressa se mandaram descendo o riacho para saírem por trás da cabana da Mãe Júlia a qual não viram . Foram picada à fora no mato se embrenhando na poeira da estrada .

PORTO VELHO 20/08/2023

Professor J Silva
Enviado por Professor J Silva em 20/08/2023
Reeditado em 14/09/2023
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